"E o que temos nós a ver com isso?"
"Eles pensam agora que ela se passou para a CIA. Aquela gente é paranóica, o que julga você?"
"Vou repetir a minha pergunta", disse Greg. "O que temos nós a ver com isso?"
"Bem... se vocês a mandam de volta, estão a enviá-la para a morte."
"E depois? Que eu saiba, não temos nada a agradecer-lhe, pois não? Afinal de contas, ela não nos ajudou. Por que razão haveríamos nós de estar preocupados com o que se passa entre ela e o regime que ela tenta estupidamente proteger?"
"Ela não tenta proteger regime nenhum. Ela tenta é não trair o seu país, só isso.
Nada mais natural, não acha?"
"Muito bem. Então também é natural que nós a repatriemos se ela não nos ajuda.
Não acha isso igualmente natural?"
"Não, não acho", vociferou Tomás, elevando o nível de voz pela primeira vez. "Acho um crime. Se vocês fizerem isso, não passam de uns bandidos. Uns gangsters da pior espécie."
"Come on, Tomás. Não seja exagerado."
"Eu? Exagerado? Então vocês comprometem-se a protegê-la dos iranianos e depois fazem-me um número destes? Não só a sequestraram quando chegamos a Lisboa como agora a querem entregar aos mesmos iranianos de quem se comprometeram a protegê-la. Que nome dão vocês a uma sujeira destas?"
"Ouça, Tomás. Nós assumimos o compromisso de a proteger em troca da revelação do segredo encerrado no manuscrito de Einstein. Que eu saiba você ainda não nos revelou esse segredo, pois não?"
"Já vos revelei o essencial."
"Então qual é a fórmula de Deus?"
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"Essa é a única coisa que não desvendei ainda. Mas já lhe disse que estou à beira de o fazer."
"Isso é conversa. O fato é que ainda não nos revelou nada e o tempo está a esgotar-se."
"Dêem-me mais alguns dias."
Fez-se um curto e embaraçado silêncio.
"Não pode ser", disse Greg por fim. "Um avião da CIA vai partir esta noite da base aérea de Kelly, no Texas, em direção a Lisboa. Chega cá amanhã de madrugada. Pouco depois das oito da manhã, o aparelho seguirá para Islamabad, no Paquistão, onde a sua amiga será entregue aos iranianos."
"Vocês não podem fazer isso!", rugiu Tomás, quase descontrolado.
"Tomás, esta não foi uma decisão minha. É uma decisão de Langley e começou já a ser executada. Tenho aqui uma mensagem que diz que as ordens já foram emitidas para o Joint Command and Control Warfare Center, em Kelly AFB."
"Isso é um crime."
"Isto é política", retorquiu Greg num tom sereno. "Preste atenção, Tomás, porque ainda há uma maneira de parar isto. Você tem até amanhã às oito da manhã para me entregar o segredo do manuscrito, ouviu? Se não me der o segredo dentro desse prazo, não conseguirei travar o repatriamento da sua amiga. Entendeu isso?"
"Amanhã, às oito da manhã? Mas como quer você que eu desvende tudo em tão pouco tempo? Isso é impossível!"
"Você é que é o profissional."
"Ouça, Greg, vocês têm de me dar mais tempo."
"Você ainda não entendeu, Tomás. Esta decisão não é minha. Foi tomada em Langley e é irreversível. Eu estou apenas a dizer-lhe qual a maneira de travar este processo, mais nada. Se você nos revelar o segredo, então ficamos automaticamente obrigados a cumprir os termos do acordo que fizemos ao telefone quando você estava em Lhasa. Enquanto não cumprir integralmente a sua parte, nós entendemos que não somos obrigados a cumprir integralmente a nossa parte. Percebe?"
"Vocês não podem fazer isso."
"Tomás, não vale a pena estar a discutir comigo. Isso não vai alterar nada porque não sou eu quem tem o poder de decisão."
"Mas você tem de convencer os tipos lá em Langley a darem-me mais tempo."
"Tomás..."
"Já são cinco da tarde e só tenho quinze horas."
"Tomás..."
"É muito pouco para eu desvendar tudo."
"Damn it, Tomás!", gritou Greg, já para lá do limite da paciência. "Você é burro ou quê?"
Tomás congelou ao telefone, espantado com a fúria repentina do americano.
"Estou-lhe a dizer que está tudo fora do meu controle", berrou o americano, exaltando-se pela primeira vez. "As decisões não foram tomadas por mim. Nada depende de mim. Nada. Existe apenas uma coisa que pode travar o repatriamento da sua amiga. Uma e uma só. Desvende o fucking segredo."
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O português manteve-se silencioso em linha.
"Tem até às oito da manhã de amanhã."
E desligou.
XXXVII
O Pátio das Escolas apresentava-se calmo àquela hora tardia do dia, via-se apenas um grupo de estudantes a subir a larga escadaria em direcção à Via Latina e dois funcionários a tagarelarem na base da elegante torre sineira. Depois de atravessar a velha Porta Férrea, Tomás abrandou o passo e, apesar da angústia que o oprimia, não pôde deixar de admirar aquele misto de fachadas sóbrias e exuberantes, carregadas de história, afinal concentravam-se ali setecentos anos de ensino. Nos primórdios aquele foi o paço real, o sítio onde nasceram e viveram muitos dos reis da primeira dinastia, mas o local tornou-se há séculos o coração da academia onde o pai lecionava, a Universidade de Coimbra.
O conjunto de edifícios encontrava-se disposto em U, com um desleixado chão de gravilha a separar os espaços. Tomás cruzou o pátio e dirigiu-se ao edifício da ponta, estacando diante da magnífica entrada; a porta apresentava-se encaixada num espetacular arco do triunfo, o topo coroado com as armas de Portugal. Sabia bem que aquele bloco retangular, com um aspecto exterior um pouco austero, era uma das mais belas bibliotecas do mundo.
A Biblioteca Joanina.
Ao entrar naquele monumento com quase três séculos sentiu o cheiro do couro que encadernava os manuscritos exalar das paredes ricamente decoradas, misturado com o travo adocicado do papel velho. Diante de si estendiam-se três salões, separados por arcos decorados ao estilo do imponente portal de entrada. A biblioteca dormia à meia-luz, um lugar de sombras e de silêncios. Todo o interior do edifício apresentava-se coberto de prateleiras, viam-se filas e filas de lombadas divididas em dois andares, as prateleiras construídas em belas madeiras, os tetos pintados a misturarem-se harmoniosamente com os dourados e avermelhados da decoração, era sem dúvida ali dentro que o barroco atingia o auge do seu esplendor.
"Professor Noronha."
Olhou para a esquerda, na direção de onde viera a voz, e observou Luís Rocha surgir de um cubículo e dirigir-se a si, sorridente. Fez um esforço para sorrir, embora a tentativa não se revelasse bem sucedida; os lábios ainda se curvaram, mas os olhos permaneceram tristes e pesados, carregados de preocupação.
"Como está, professor Rocha?", cumprimentou Tomás, estendendo o braço.
Apertaram as mãos.
"Bem-vindo ao meu recanto favorito aqui em Coimbra", exclamou Luís. Fez um gesto que abarcou toda a biblioteca, incluindo as inúmeras obras suntuosamente forradas nas estantes. "Cem mil livros nos rodeiam."
"Ah, muito bem", disse o historiador de ar ausente, não se sentia com disposição para apreciar os tesouros que o rodeavam. "Ouça, agradeço-lhe a prontidão com que aceitou falar comigo."
"Ora essa, não tem de agradecer", devolveu o físico com um gesto descontraído.
"Mas, então,
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que coisa é essa de vida ou de morte de que me falou há pouco, hã? Devo dizer que você me pareceu muito ansioso ao telefone..."
Tomás suspirou.
"Nem me fale", murmurou, rolando os olhos. "Só o senhor me pode ajudar, sabe?"
Luís Rocha fez uma expressão intrigada.