"Dez sephirot cabalísticos para criar o universo, dez dimensões nas cordas dos fermiões para criar a matéria", disse, erguendo um dedo. Acrescentou um segundo dedo. "Vinte e seis é a guematria do maior nome de Deus, vinte e seis são as dimensões nas cordas dos bosões para criar a matéria." Veio o terceiro dedo. "Vinte e duas letras do alfabeto hebraico, vinte e duas as dimensões que permanecem ocultas no microcosmos." Agora o quarto. "Trinta e seis caminhos percorridos por Deus para criar o universo, trinta e seis é a soma das dimensões nas quais vibram os bosões e os fermiões." Piscou o olho, como uma criança que descobriu a chave do quarto dos brinquedos. "Será coincidência?"
"Bem... uh... isso é realmente surpreendente."
"O que Einstein constatou é que os textos sagrados contêm verdades científicas profundas, impossíveis de conhecer no seu tempo. E não é só na Bíblia, sabe? Os textos hindus, os textos budistas, os textos taoístas, todos eles encerram verdades eternas, aquele tipo de verdades que só agora a ciência começa a desvendar. A questão é: como é que os sábios antigos tiveram acesso a essas verdades?"
Fez-se uma pausa.
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"E qual é a resposta?"
"Não sei. Ninguém sabe. Pode ser tudo coincidência, claro. Afinal de contas, o ser humano gosta de encontrar padrões em tudo, não é? Mas pode ser também que, tal como as micropartículas da experiência Aspect não passam de imanências de um único real, as verdades científicas contidas nas sagradas escrituras constituam imanências desse mesmo real único. É como se os sábios antigos tivessem sido inspirados por algo profundo, eterno, onipresente mas invisível."
"Estou a ver..."
"Tudo isto para lhe dizer que, embora Einstein e o professor Siza não acreditassem no Deus da Bíblia, achavam ambos que, em determinados aspectos e sob determinadas formas, as sagradas escrituras misteriosamente ocultavam verdades profundas."
Beberam mais um trago do expresso.
"De qualquer modo, e apesar dessas estranhas coincidências, o Deus que o professor Siza procurou não foi o Deus da Bíblia..."
"É isso", assentiu Luís Rocha. "Não foi o Deus da Bíblia. Foi algo de diferente. O
professor Siza foi à procura de uma força criadora, inteligente e consciente, mas não necessariamente moral, nem boa, nem má." Suspirou. "Assim delimitado o campo de investigação, redefinindo-se o objeto de estudo, houve que proceder a uma segunda definição: o que é isso de provar a existência de Deus?"
O físico deixou a pergunta no ar.
"Está-me a perguntar a mim?", quis saber Tomás, hesitante, sem saber se a pergunta era meramente retórica ou para ser de fato respondida.
"Sim, claro. O que é isso de provar a existência de Deus?"
"Bem... uh... não sei, confesso que não sei."
"Será arranjar um telescópio tão poderoso que nos permitirá ver Deus, com as suas grandes barbas de patriarca, a brincar com estrelas? Será desenvolver uma equação matemática que contenha o ADN de Deus? Mas afinal o que é isso de provar a existência de Deus?"
"É uma boa pergunta, sem dúvida", considerou Tomás. "Qual a resposta?"
Luís Rocha exibiu três dedos.
"A resposta assenta em três pontos", disse. "Primeiro, Deus é sutil. Através da Teoria do Caos, dos teoremas da Incompletude e do Princípio da Incerteza ficámos a perceber que o Criador ocultou a Sua assinatura, escondeu-se por detrás de um fino véu engenhosamente concebido para O tornar invisível. Isso, como é bom de ver, dificulta seriamente a tarefa de provar a Sua existência." Traçou o segundo dedo.
"Segundo, Deus não é inteligível através da observação. Quer isto dizer que não é possível provar a Sua existência por intermédio de um telescópio ou de um microscópio."
"E por que não?", interrompeu Tomás.
"Ora, por vários motivos", retorquiu o físico. "Repare, imagine que o universo é Deus, como defendia Einstein. Como observá-Lo na sua totalidade? O professor Siza chegou à conclusão de que os físicos e os matemáticos estavam a observar o universo um pouco como um engenheiro olha para um televisor. Imagine que se pergunta a um 301
engenheiro: o que é a televisão? O engenheiro põe-se a observar um televisor, abre-o todo e depois diz que a televisão são fios e esquemas elétricos estruturados de uma determinada maneira." Apontou para Tomás. "Mas eu pergunto-lhe a si: acha que isso dá uma resposta completa à questão de saber o que é a televisão?"
"Uh... dá uma resposta de engenheiro, acho eu."
"É isso, dá uma resposta de engenheiro. Mas a televisão, sendo fios e circuitos eléctricos, é muito mais do que isso, não é? A televisão transmite programas de informação e entretenimento, tem um impacto psicológico junto de cada pessoa, permite a transmissão de mensagens, produz vastos efeitos sociológicos na sociedade, tem dimensão política e cultural, enfim... é uma coisa muito mais vasta do que a mera descrição das suas componentes tecnológicas."
"Está a colocar aquele problema de que já me tinha falado, o hardware e o software?"
"Nem mais", concordou Luís Rocha. "A perspectiva reducionista, que se centra no hardware, e a perspectiva semântica, inserida no software. Os físicos e os matemáticos olham para o universo como um engenheiro olha para um televisor ou para um computador. Apenas vêem os átomos e a matéria, as forças e as leis que as regem, e tudo isso, se formos a ver bem, não passa de hardware. Mas qual é a mensagem deste enorme televisor? Qual é o programa deste gigantesco computador? O professor Siza concluiu que o universo tem um programa, dispõe de um software, possui uma dimensão que está muito para além da soma das suas componentes. Ou seja, o universo é muito mais do que o hardware que o constitui. É um gigantesco programa de software. O hardware apenas existe para viabilizar esse programa."
"Como um ser humano", observou Tomás.
"Exato. Um ser humano é feito de células e tecidos e órgãos e sangue e nervos.
Isso é o hardware. Mas o ser humano é muito mais do que isso. É uma estrutura complexa que possui consciência, que ri, que chora, que pensa, que sofre, que canta, que sonha e que deseja. Ou seja, somos muito, muito mais do que a mera soma das partes que nos constituem. O nosso corpo é o hardware por onde passa o software da nossa consciência." Fez um gesto largo com os braços. "Assim é também a realidade mais profunda da existência. O universo é o hardware por onde passa o software de Deus."
"É uma idéia arrojada", considerou Tomás. "Mas tem a sua lógica."
"O que nos remete para o problema do infinito", exclamou o físico. "Repare, se o universo é o hardware de Deus, isso coloca várias questões curiosas, já viu? Por exemplo, uma vez que nós, seres humanos, fazemos parte do universo, isso significa que nós somos parte do hardware, não é? Mas, será que somos também, nós próprios, um universo? Será que o universo é alguém imensamente grande, tão grande que não o vemos, tão grande que se torna invisível? Alguém tão grande para nós como tão grandes somos nós para as nossas células? Será que estamos para o universo como os nossos neurônios estão para nós? Será que somos o universo dos neurônios e somos os neurônios de alguém muito maior? Será que o universo é uma entidade orgânica e nós não passamos das suas células minúsculas? Seremos nós o Deus das nossas células e nós as células de Deus?"
Ficaram ambos um longo momento a digerir aquelas interrogações.
"O que acha você?", quis saber Tomás.