"Acho que o problema do infinito é tramado", devolveu Luís Rocha. "Sabe, nós, os físicos, andamos à procura de partículas fundamentais, mas sempre que as encontramos acabamos por descobrir que elas são, afinal, compostas por partículas 302
mais pequenas. Primeiro pensava-se que o átomo era a partícula fundamental. Depois descobriu-se que o átomo era constituído por partículas mais pequenas, os protões, os neutrões e os electrões. Julgou-se então que essas é que eram as partículas fundamentais. Mas descobriu-se afinal que os protões e os neutrões são formados por outras micropartículas mais pequenas, os quarks. E há quem pense que os quarks são formados por novas micropartículas ainda mais pequenas e as mais pequenas por outras mais pequenas. O microcosmos é infinitamente pequeno."
"Como o Paradoxo de Zenão", comentou Tomás, com um sorriso. "Tudo é divisível pela metade."
"Exato", concordou o físico. "E, pela mesma razão, tudo é multiplicável pelo dobro. Por exemplo, o nosso universo é enorme, não é? Mas as últimas teorias cosmológicas admitem a possibilidade de este ser apenas um entre bilhões de universos. O nosso universo nasceu, está a crescer e, conforme o demonstra a segunda lei da termodinâmica, irá morrer. Ao lado dele existirão muitos outros iguais.
É como se o nosso universo não passasse de uma bolha de espuma num oceano imenso, ao lado de imensas outras bolhas de espuma iguais." Fez uma pausa.
"Chamam-lhe o meta-universo."
"Portanto, o universo é então infinito."
"É uma possibilidade. Mas não é a única."
"Existe outra?"
"Existe a possibilidade de o universo ser finito."
"O universo ser finito? Acha isso possível?"
"Ouça, é outra possibilidade."
"Mas como é isso possível? Se o universo for finito, o que há para além do seu limite?"
"A ser finito, não teria limite."
"Como assim? Não entendo..."
"É simples. Fernão de Magalhães começou a navegar para oeste, certo? Navegou, navegou, navegou e, surpresa, veio parar ao ponto de partida." Luís Rocha ergueu as mãos e rodou-as, como se segurasse uma bola. "Ou seja, ele provou que a Terra é finita, mas não tem limite. É possível que o universo também seja assim. Finito, mas sem limites."
"Estou a entender."
Os dois terminaram o café.
"Bem, tudo isto porque estava eu a dizer que a resposta à questão da prova da existência de Deus assenta em três pontos fundamentais. O primeiro é a constatação de que Deus é sutil e o segundo é a constatação de que não O podemos observar através de um telescópio ou de um microscópio." Ergueu um terceiro dedo. "Mas, apesar de todas as dificuldades, há uma maneira indireta de chegar à prova da existência de Deus."
"Então?"
"Através da busca de dois traços essenciais: a inteligência e a intenção. O
professor Siza determinou que, para sabermos se o universo foi criado por uma inteligência consciente, temos de dar resposta a uma pergunta fundamentaclass="underline" existe ou não inteligência e intenção na criação do universo?" Inclinou a cabeça. "Não basta que 303
a resposta seja afirmativa em relação a um destes pontos. Tem de ser afirmativa em relação aos dois, percebeu?"
Tomás fez uma careta pensativa.
"Não muito bem. Se se conseguir provar que há inteligência, não acha que isso basta?"
"Claro que não", devolveu Luís Rocha. "Olhando para a rotação da Terra em torno do Sol, parece-nos a nós evidente que há inteligência no movimento. Mas essa inteligência é intencional ou fortuita? É que, repare, pode ser tudo fruto do mero acaso, não pode? Se o universo for infinitamente grande, é inevitável que, num número infinito de situações diferentes, algumas exibam as características da nossa.
Portanto, se a inteligência das coisas for fortuita, não é possível vermos aí, com toda a certeza, a mão de Deus, pois não? Temos também de determinar se há intenção."
"Estou a perceber."
"O problema é que o conceito de intenção é muito difícil de concretizar. Qualquer professor aqui da Faculdade de Direito lhe dirá isso. Num processo em tribunal, uma das grandes dificuldades é justamente a de determinar a intenção do arguido quando cometeu determinado ato. O arguido matou uma pessoa, mas matou-a porque quis matar ou isso foi um acidente? O arguido sabe que matar com intenção é mais grave e, em geral, argumenta que matou mas não quis matar, tudo não passou de um terrível azar. A dificuldade é, pois, a de determinar a intenção do acto." Fez um gesto largo com os braços. "O mesmo se passa no universo. Olhando para tudo em nosso redor, podemos constatar que existe grande inteligência na concepção das coisas. Mas essa inteligência é fortuita ou existe uma intenção por detrás de tudo? A haver intenção, qual é essa intenção? E, elemento
crucial, existirá alguma maneira de, havendo intenção, demonstrar a sua existência?"
"A resposta não está naquela metáfora do relógio que você me explicou no outro dia?"
"Sim, o relógio de William Paley é um argumento poderosíssimo. Se encontrarmos no chão um relógio e o analisarmos, logo percebemos que ele foi concebido por um ser inteligente com uma intenção. Ora, se isso é válido para uma coisa tão simples como um mero relógio, por que não seria válido para uma coisa tão imensamente mais inteligente e complexa como é o universo?"
"Justamente. Isso não serve de prova?"
"É um poderoso indício de inteligência e intenção, mas não é prova."
"Então como é que se pode fazer a prova?"
Luís Rocha endireitou-se na cadeira.
"Foi Einstein quem deu a pista", disse.
"Qual pista?"
O físico levantou-se do seu lugar e convidou Tomás a segui-lo para fora daquele apertado compartimento.
"Venha daí", disse. "Vou-lhe mostrar a segunda via."
304
XXXIX
Percorreram o longo tapete vermelho e atravessaram toda a biblioteca. Luís Rocha parecia um cicerone, guiando Tomás até junto de um enorme retrato emoldurado na parede do fundo, por entre as estantes de livros. Era uma soberba pintura de D. João V, o monarca ao qual a Biblioteca Joanina devia o seu nome. O
físico pousou as suas coisas sobre um elegante piano negro de cauda que se encontrava instalado diante do retrato e fez sinal a Tomás para o seguir.
"Venha daí", disse.
Dirigiu-se a uma coluna do arco de acesso à última sala e, inesperadamente, abriu uma porta disfarçada na parede e mergulhou na sombra. Apesar de apanhado de surpresa, Tomás seguiu no encalço. Escalaram uma escadaria estreita envolta em escuridão e emergiram no primeiro andar, num apertado varandim de madeira, que percorreram até chegarem junto da parte alta do grande retrato. O anfitrião examinou a terceira estante da esquerda, tirou um volume branco, meteu a mão pelo buraco aberto entre os livros, extraiu da sombra uma pasta de cartolina azul-bebê, voltou a guardar o volume no lugar e fez sinal ao seu convidado para regressarem pelo mesmo caminho.
"O que é isso?", perguntou Tomás, intrigado, quando voltaram ao piso térreo.
"Esta é a segunda via", revelou Luís Rocha, sentando-se pesadamente na cadeira ao pé do piano, diante do olhar eternizado em tela de D. João V. "A prova científica da existência de Deus feita pelo professor Siza."
Tomás pousou os olhos na pasta. A cartolina apresentava um aspecto algo gasto e exibia o logótipo da Universidade de Coimbra, com um elástico em volta a fechá-la.