Fez-se silêncio.
"O que descobriu ele?", perguntou Tomás, mal contendo a curiosidade.
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Luís Rocha inclinou a cabeça.
"Não sei se se lembra, mas quando o senhor esteve na minha primeira aula, aqui há algumas semanas, eu falei no problema do Ômega. Recorda-se disso?"
"Claro."
"O que reteve do que eu disse?"
"Bem... uh... disse que havia dois fins possíveis para o universo. Ou o universo parava a expansão e se retraía, acabando esmagado..."
"O Big Crunch..."
"... ou se expandia infinitamente até se acabar toda a sua energia e transformar-se num cemitério gelado."
"O Big Freeze. E o que provocava isso, lembra-se?"
"Acho que... acho que era a gravidade, não era?"
"Exato", exclamou o físico, fazendo sinal de aprovação. "Vejo que percebeu o que eu disse na aula. Se a velocidade de expansão conseguir vencer a força da gravidade, o universo expandir-se-á eternamente. Se não conseguir, regressará ao ponto de partida, um pouco como uma moeda que se atira para o ar e que acaba por voltar para baixo. Enquanto sobe, a moeda está a vencer a gravidade. Mas, depois, a gravidade acaba por vencê-la."
"É isso, lembro-me desse exemplo."
Luís Rocha ergueu um dedo.
"Só que eu não disse tudo. Existe uma terceira hipótese, que é a da força da expansão ser exatamente igual à força da gravidade de toda a matéria existente. A hipótese de isso acontecer é ínfima, claro, pois seria uma extraordinária coincidência que, considerando os enormes valores que estão em causa, a expansão do universo fosse exatamente contrariada pela gravidade exercida por toda a matéria, não acha?"
"Bem... sim, acho que sim."
"E, no entanto, é isso o que nos diz a observação. O universo está a expandir-se a uma velocidade incrivelmente próxima da linha crítica que separa o universo do Big Freeze do universo do Big Crunch. Já se descobriu que a expansão está em aceleração, o que sugere um futuro de Big Freeze, mas isso não é, nem por sombras, certo. A verdade é que, por incrível que pareça, encontramo-nos na linha divisória entre as duas possibilidades."
"Ah é?"
"É estranho, não lhe parece? E o fato é que isso, meu caro, significa que nos saiu a sorte grande."
"Como assim?"
"É muito simples. Imagine só a descomunal energia libertada no momento da criação do universo. Acha que é possível controlar toda essa gigantesca erupção?"
"Claro que não."
"É evidente que não. Considerando a força bruta do Big Bang, é muito natural que a expansão não possa ser controlada, não é? Essa expansão deveria ou não levar de vencida a força de gravidade de toda a matéria. É infinitamente improvável que a expansão e a gravidade estejam equilibradas. E, no entanto, ambas parecem estar muito próximas de se encontrarem equilibradas, se é que não estão mesmo equilibradas. Isto, meu caro, é o jackpot da lotaria. Repare, sendo o Big Bang um 308
acontecimento acidental e descontrolado, a probabilidade de o universo permanecer para sempre num estado caótico, de máxima entropia, seria colossalmente esmagadora. O fato de haver estruturas de baixa entropia é um mistério muito grande, tão grande que alguns físicos dizem tratar-se de um incrível acaso. Se toda a energia libertada pelo Big Bang fosse uma pequeníssima fração mais fraca, a matéria voltaria para trás e esmagar-se-ia num gigantesco buraco negro. Se fosse marginalmente mais forte, a matéria dispersar-se-ia tão depressa que as galáxias nem sequer se chegariam a formar."
"Quando fala numa fração mais fraca ou mais forte, está a falar em quê? Numa diferença de cinco por cento? De dez por cento?"
Luís Rocha riu-se.
"Não", disse. "Estou a falar em frações inacreditavelmente pequenas, trilionesimais." Luís Rocha pegou numa caneta de feltro. "Olhe, o professor Siza fez as contas e descobriu que, para que o universo pudesse expandir-se de modo ordeiro, essa energia teria de ter uma precisão na ordem de um para 10120. Ou seja..."
Colocou a língua no canto da boca e redigiu o valor.
1000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000
00000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000
0
O físico mordiscou caneta, mirando este vasto número.
"Quer isto dizer que bastava a afinação ter falhado um bocadinho de nada e o universo não teria a possibilidade de albergar vida. Recuaria para um monumental buraco negro ou dispersar-se-ia sem formar galáxias."
Tomás contemplou aquela enorme extensão de zeros, tentando digerir o seu significado.
"Incrível!" Os olhos voltaram a desfilar por aquela sucessão de algarismos redondos. "Isto equivale a quê? À hipótese de eu ganhar hoje a lotaria?"
Luís Rocha voltou a rir-se.
"Muito menos do que isso", disse. "Olhe, isto equivale à hipótese que você tem de atirar uma seta ao acaso para o espaço e ela atravessar todo o cosmos e ir atingir um alvo com um milímetro de diâmetro localizado na galáxia mais próxima."
"Caramba!", exclamou Tomás, pondo a mão diante da boca. "Isso seria uma sorte inacreditável..."
"Pois seria", concordou o físico. "E, no entanto, a energia do Big Bang tinha este valor tão incrivelmente preciso, situado neste intervalo tão espantosamente estreito. O
mais extraordinário é que foi, de fato, libertada a energia rigorosamente necessária para que o universo se pudesse organizar. Isto é, nem mais nem menos a energia estritamente imprescindível para tal." Folheou mais umas páginas. "Esta surpreendente descoberta levou o professor Siza a embrenhar-se no estudo das condições iniciais do universo."
"O Big Bang?"
"Sim, o Big Bang e o que se lhe seguiu." Pegou nas anotações e folheou-as, até parar numa página. "Por exemplo, a questão da criação da matéria. Quando ocorreu a grande expansão criadora, não havia matéria. A temperatura era imensamente 309
elevada, tão elevada que nem os átomos se conseguiam formar. O universo era então uma sopa escaldante de partículas e antipartículas, criadas a partir da energia e sempre a aniquilarem-se umas às outras. Essas partículas, os quarks e os antiquarks, são idênticas umas às outras, mas com cargas opostas, e, quando se tocam, explodem e voltam a ser energia. À medida que o universo se ia expandindo, a temperatura ia baixando e os quarks e antiquarks foram formando partículas maiores, chamadas hadrões, mas sempre a aniquilarem-se umas às outras. Criou-se assim a matéria e a antimatéria. Como as quantidades de matéria e de antimatéria eram iguais e ambas se aniquilavam mutuamente, o universo apresentava-se constituído por energia e partículas de existência efêmera e não havia hipóteses de se formar matéria duradoura. Está a perceber?"
"Sim."
"O que se passou, no entanto, foi que, por uma razão muito misteriosa, a matéria começou a ser produzida numa quantidade minusculamente maior do que a antimatéria. Para cada dez mil milhões de antipartículas, produziam-se dez mil milhões e uma partículas."
Rabiscou a comparação com a caneta de feltro.
10 000 000 000 Antipartículas
10 000 000 001 Partículas
"Está a ver?", disse, exibindo a anotação. "Uma diferença mínima, quase insignificante, não é? Mas, olhe, foi suficiente para produzir a matéria. Isto é, dez mil milhões de partículas eram destruídas por dez mil milhões de antipartículas, mas sobrava sempre uma que não era destruída. Foi justamente essa partícula sobrevivente que, juntando-se a outras sobreviventes nas mesmas circunstâncias, formou a matéria." Bateu repetidamente com o dedo na anotação. "Ou seja, o professor Siza percebeu que, para a criação do universo, tinha ocorrido mais um acaso extraordinário. Se o número de partículas e antipartículas permanecesse exatamente igual, como parece natural, não haveria matéria." Sorriu. "Sem matéria, nós não estávamos aqui."