problema é que o tempo de vida do berílio radioactivo se limita a uma insignificante fracção de segundo." Gatafunhou o valor.
"Está a ver? O berílio radioativo só dura este instante." Tomás tentou avaliar quanto tempo seria aquele micronésimo de segundo.
"Mas isto não é nada", observou. "Nada de nada."
"Pois é", concordou o físico. "E, no entanto, é justamente neste período incrivelmente curto que o núcleo do berílio radioativo tem de localizar, colidir e absorver um núcleo de hélio, criando assim o carbono. A única forma de isto ser possível num instante tão efêmero é o das energias destes núcleos serem exatamente 312
iguais no momento em que colidem. E, nova surpresa, são mesmo iguais!" Piscou o olho. "Hã? Grande sorte! Se houvesse uma discrepância ligeiríssima, mínima que fosse, não se poderia formar carbono. Mas, por extraordinário que pareça, não existe qualquer discrepância. Graças a um brutal golpe de sorte, a energia dos constituintes nucleares das estrelas situa-se exatamente no ponto adequado, permitindo a fusão."
"É incrível", comentou Tomás.
"Mas olhe que houve ainda outro espantoso golpe de sorte", adiantou Luís Rocha.
"É que o tempo de colisão do hélio é ainda mais efémero do que o curtíssimo tempo de vida do berílio radioactivo, e isso permite a reacção nuclear que produz o carbono.
Para além do mais, há o problema do carbono sobreviver à subsequente actividade nuclear dentro da estrela, o que só é possível em condições muito especiais. E, veja só!, graças a uma nova e extraordinária coincidência, essas condições reuniram-se e o carbono não se transforma em oxigênio." Sorriu. "Admito que, para um leigo, isto pareça chinês. Mas garanto-lhe que um físico achará que tudo isto é uma sorte absolutamente inacreditável. São quatro jackpots numa única chave!"
"Caramba", riu-se Tomás. "Vamos ficar milionários!"
Luís Rocha pegou na resma de folhas repletas de anotações e contas e exibiu-as ao seu interlocutor.
"Está a ver isto? Está tudo cheio de descobertas do gênero. Eu e o professor Siza passamos os últimos anos a detectar e a coleccionar coincidências improváveis que são absolutamente imprescindíveis para que haja vida. A incrível afinação requerida nas diversas forças, na temperatura do universo primordial, na sua taxa de expansão, mas também as extraordinárias coincidências necessárias no nosso próprio planeta.
Por exemplo, o problema da inclinação do eixo de um planeta. Devido às ressonâncias entre a rotação dos planetas e o conjunto dos corpos do sistema solar, a Terra deveria ter uma evolução caótica na inclinação do seu eixo de rotação, o que, como é óbvio, impediria a existência de vida. Um hemisfério poderia passar seis meses a tostar ao Sol, sem nenhuma noite, e outros seis meses a gelar à luz das estrelas. Mas o nosso planeta teve uma sorte inacreditável. Sabe qual foi?"
"Não."
"O aparecimento da Lua. A Lua é um objeto tão grande que os seus efeitos gravitacionais moderaram o ângulo de inclinação do nosso planeta, assim viabilizando a vida."
"Caramba, até a Lua!"
"É verdade", concordou o físico. "Sabe, todos os pormenores parecem conspirar para viabilizar a vida na Terra. Olhe, o fato de a Terra possuir níquel e ferro líquido em quantidade suficiente no núcleo para gerar um campo magnético imprescindível para defender a atmosfera das letais partículas emitidas pelo Sol. Isso é uma sorte. Outra extraordinária coincidência é o fato de o carbono ser o elemento sólido mais abundante no espaço térmico em que a água é líquida. A própria órbita da Terra é crucial. Cinco por cento mais próxima do Sol ou quinze por cento mais afastada bastaria para impossibilitar o desenvolvimento de formas complexas de vida." Voltou a colocar a resma dentro da pasta. "Enfim, a lista de coincidências e improbabilidades é aparentemente infindável."
Tomás remexeu-se na sua cadeira.
"Estou a perceber", disse, ainda tentando extrair um significado de toda aquela informação. "Mas o que quer dizer tudo isto?"
"Não é óbvio?", admirou-se o físico. "Isto quer dizer que não foi apenas a vida que se adaptou ao universo. O próprio universo preparou-se para a vida. De certo modo, é 313
como se o universo sempre soubesse que nós vínhamos aí. A nossa mera existência parece depender de uma extraordinária e misteriosa cadeia de coincidências e improbabilidades. As propriedades do universo, tal como estão configuradas, são requisitos imprescindíveis para a existência de vida.
Essas propriedades poderiam ser infinitamente diferentes. Todas as alternativas conduziriam a um universo sem vida. Para haver vida, um grande número de parâmetros teria de estar afinado para um valor muito específico e rigoroso. E o que descobrimos nós? Essa afinação existe." Fechou a pasta. "Chama-se a isto Princípio Antrópico."
"Como?"
"Princípio Antrópico", repetiu o físico. "O Princípio Antrópico significa que o universo está concebido de propósito para criar vida."
Tomás abriu a boca.
"Estou a entender."
"Essa é a única explicação para o inacreditável rol de coincidências e improbabilidades que nos permitem estar aqui."
O historiador coçou a cara, pensativo.
"Isto é realmente esmagador", admitiu. "Mas pode ser tudo fruto do acaso, não pode? Quer dizer, é altamente improvável que eu ganhe a loteria, claro. Mas, afinal de contas, a loteria tem de sair a alguém, não tem? A lei das probabilidades diz que sim.
É evidente que, na perspectiva da pessoa a quem sai a loteria, tudo isto parece altamente improvável. O fato, porém, é que alguém tinha de ganhar a loteria."
"É verdade", concordou Luís Rocha. "Só que, neste caso, estamos a falar em múltiplas loterias. Repare, saiu-nos a sorte grande quanto à afinação da expansão do universo, quanto à afinação da temperatura primordial, quanto à afinação da homogeneidade da matéria, quanto à ligeiríssima vantagem da matéria sobre a antimatéria, quanto à afinação da constante da estrutura fina, quanto à afinação dos valores das forças forte, electrofraca e da gravidade, quanto à afinação da taxa de conversão do hidrogênio em hélio, quanto ao delicado processo de formação do carbono, quanto à existência no núcleo da Terra dos metais que criam o campo magnético, quanto à órbita do planeta... enfim, quanto a tudo. Bastava os valores serem marginalmente diferentes num único destes fatores e, puf!, não havia vida. Mas não, eles coincidem todos. É extraordinário, não acha?" Fez um gesto vago com a mão.
"Olhe, é um pouco como se eu fosse dar uma volta ao mundo e comprasse um bilhete da lotaria em cada país por onde passasse. Quando mais tarde chegasse a casa, descobria que me tinha saído a sorte grande em todos os bilhetes que comprei. Todos!"
Riu-se. "É evidente que poderia ter uma sorte fantástica e sair-me a loteria num desses países. Já seria absolutamente extraordinário, no entanto, se me saísse a lotaria em dois países. Mas, se me saísse a loteria em todos os países, alto lá! Logo se desconfiava, não é? Não é preciso ser-se um grande gênio para perceber que teria de haver algo de anormal a acontecer... uma marosca, sei lá. Com toda a certeza estava aqui montado um esquema qualquer, não acha? Pois foi isso justamente o que aconteceu à vida. Saiu-lhe a sorte grande em todos os parâmetros. Todos!" Ergueu um dedo. "Portanto, só há uma conclusão a tirar: está aqui montado um esquema qualquer. Há marosca no ar."