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"Pois, realmente... uh... parece de fato um pouco inexplicável toda esta sorte.

Quando a esmola é grande, o pobre desconfia, não é?"

Luís Rocha inclinou-se na cadeira.

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"O que eu lhe quero dizer, professor Noronha, é que, quanto mais observamos e analisamos o universo, mais concluímos que ele revela as duas características fundamentais inerentes à ação de uma força inteligente e consciente." Ergueu o polegar esquerdo. "Uma é a inteligência com que tudo está concebido." Acrescentou o indicador esquerdo. "Outra é a intenção de planear as coisas para criar vida. O

Princípio Antrópico revela-nos que há intenção na concepção da vida. A vida não é um acidente, não é fruto do acaso, não é o produto fortuito de circunstâncias anormais. É

o resultado inevitável da mera aplicação das leis da física e dos misteriosos valores das suas constantes." Fez uma pausa, aumentando o efeito dramático das suas palavras.

"O universo está concebido para criar vida."

As palavras ressoaram pela Biblioteca Joanina, desfazendo-se no silêncio como uma nuvem no céu.

"Estou a ver", murmurou Tomás. "É espantoso. O que esta segunda via revela é...

é assombroso, no mínimo."

"Sim", concordou Luís Rocha. "A descoberta do Princípio Antrópico constitui a segunda via da confirmação da existência de Deus." Voltou atrás na resma, localizando uma folha que já consultara. "Lembra-se da pista lançada por Einstein?"

"Sim."

O físico leu as anotações nessa folha.

"Einstein disse, e passo a citar: «o que realmente me interessa é saber se Deus poderia ter feito o mundo de uma maneira diferente, ou seja, se a necessidade de simplicidade lógica deixa alguma liberdade»." Fitou Tomás. "Sabe qual é a resposta a esta questão?"

"A luz do que me disse, só pode ser não."

"Nem mais. A resposta é não." Luís Rocha abanou a cabeça. "Não, Deus não poderia ter feito o mundo de maneira diferente." Franziu o sobrolho e esboçou um sorriso leve, quase malicioso. "Mas há mais uma coisa que ainda não lhe disse."

"Mais uma? O quê?"

"Como é evidente, o Princípio Antrópico constitui um poderosíssimo indício da existência de Deus. Quer dizer, se tudo está assim tão inacreditavelmente afinado para possibilitar a existência de vida, então é porque o universo foi, de facto, concebido para a criar, não é? Mas mantém-se uma dúvida residual. Ela é muito pequena, absolutamente ínfima, mas permanece lá, como um espinho cravado no pé, um incômodo escolho que nos impede de ter a certeza absoluta." Baixou a voz, quase falando num sussurro. "E se tudo não passar de um monumental acaso? E se estas circunstâncias todas resultarem de um extraordinário jogo fortuito de espantosas coincidências? Ganhamos múltiplas loterias cósmicas, é certo e incontestável, mas, por muito improvável que isso nos pareça, há sempre a minúscula possibilidade de ter sido tudo um gigantesco acidente, não há?"

"Sim, claro", concordou Tomás. "Essa possibilidade existe."

"E, enquanto essa vaga possibilidade existir, não se pode dizer com toda a segurança que o Princípio Antrópico seja a prova final, pois não? É um poderoso indício, é verdade, mas não é ainda a prova."

"Pois. De fato, não é ainda a prova, não."

"Esta remota possibilidade de ser tudo um monumental acidente andou muito tempo a perturbar o professor Siza. Ele achava que esta desconfortável situação, esta maçadora incerteza marginal, fazia parte das habituais sutilezas de Deus, já descritas 315

por Einstein. Isto é, tal como os teoremas da Incompletude mostram que não se pode provar a coerência de um sistema matemático, embora as suas afirmações não demonstráveis sejam verdadeiras, esta longínqua possibilidade impedia que ficasse provada, para além de qualquer dúvida, a existência de uma força inteligente e consciente por detrás da arquitectura do universo. Parecia ao professor Siza que Deus se voltava a esconder por entre o jogo de espelhos de uma derradeira subtileza, subtraindo a prova justamente quando estávamos prestes a tocá-la."

"Compreendo."

"Até que, no início deste ano, o professor Siza teve uma epifania."

"Perdão?"

"Fez-se-lhe luz."

"Como assim, fez-se-lhe luz?"

"O professor Siza estava um dia no seu gabinete a calcular o comportamento caótico dos electrões num campo magnético quando, de repente, teve a idéia que, de uma assentada, resolvia a derradeira incerteza e transformava o Princípio Antrópico, não apenas num poderoso indício da existência de Deus, mas na prova final."

Tomás voltou a remexer-se na cadeira. Inclinou-se um tudo-nada para a frente e estreitou os olhos.

"A prova final? Ele conseguiu a prova final?"

Luís Rocha manteve o sorriso suave.

"A prova final radica no problema do determinismo."

"Não entendo."

"Como já lhe disse, Kant escreveu certa vez que há três questões que nunca serão resolvidas: a existência de Deus, a imortalidade e a livre vontade. O professor Siza, no entanto, acreditava que estas questões, para além de serem resolúveis, estavam ligadas entre si." Pigarreou. "O problema da livre vontade é o de saber até que ponto nós somos livres nas nossas decisões. Durante muito tempo pensou-se que éramos, mas as descobertas científicas foram gradualmente limitando o campo da nossa liberdade. Foi-se descobrindo que as nossas decisões, embora pareçam livres, são na verdade condicionadas por um sem-número de fatores. Por exemplo, se eu decido comer, essa decisão foi realmente tomada pela minha consciência ou por uma necessidade biológica do meu corpo? A pouco e pouco começou a perceber-se que as nossas decisões não são verdadeiramente nossas. Tudo o que fazemos corresponde ao que nos impõem as nossas características intrínsecas, como o ADN, a biologia e a química do nosso corpo, para além de outros factores, em interacção dinâmica e complexa com fatores exteriores, como a cultura, a ideologia e todos os múltiplos acontecimentos que ocorrem na nossa vida. Por exemplo, descobriu-se que há pessoas que são tristes, não porque a sua vida seja triste, mas pela simples razão de que o seu corpo não produz seretonina, uma substância que regula o humor. Assim sendo, muitas das ações dessas pessoas deprimidas têm origem nessa sua insuficiência química e não no livre-arbítrio. Está a perceber?"

"Estar, estou", disse Tomás, hesitante. "O meu pai já me tinha falado nisso e confesso que continua a parecer-me um pouco chocante."

"O quê?"

"Essa idéia de que não dispomos de livre vontade, de que o livre-arbítrio não passa de uma

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ilusão. Parece que não passamos de uns meros robôs..."

"Talvez, admito que sim", concordou Luís Rocha. "Mas olhe que é o que a ciência de certo modo concluiu. Repare, a matemática é determinista. Dois e dois são sempre quatro. A física é a aplicação da matemática no universo, com a matéria e a energia a obedecerem a leis e forças universais. Quando um planeta gira à volta do Sol ou um electrão à volta do núcleo do átomo, isso não acontece porque lhes apetece, mas porque a isso as leis da física os obrigam. Está claro?"