"Hmm-hmm."
"As teorias da Relatividade mostraram, por outro lado, que o tempo decorre de modo diferente em diversos sítios do universo, condicionado pela velocidade da matéria e pela força da gravidade. Os acontecimentos A e B ocorrem em simultâneo num ponto do universo e decorrem desfasadamente noutros lugares, num ponto primeiro o A e depois o B, enquanto num terceiro ponto ocorre primeiro o B e depois o A. Isto quer dizer que, num ponto do universo, o B ainda não ocorreu, mas vai ocorrer.
Aconteça o que acontecer, vai ocorrer porque isso está determinado." Inclinou a cabeça, sempre de olhos fixos em Tomás. "E, pergunto-lhe eu agora, quando é que tudo foi determinado?"
"Quando?"
"Sim, quando?"
"Uh... sei lá! No início, suponho eu."
"Nem mais", exclamou Luís Rocha. "Tudo foi determinado no início, no instante em que o universo se formou. A energia e a matéria foram distribuídas de determinada forma e as leis e os valores das constantes foram concebidos de determinada maneira, e isso determinou logo ali a história que toda aquela matéria e energia teriam daí para a frente. Está a perceber?"
"Sim..."
"E não está a ver a relação que tudo isso tem com o Princípio Antrópico?"
Tomás hesitou, procurando a ligação entre as duas coisas. Mas a hesitação durou apenas um breve instante, o momento de inspirar e expirar, porque logo arregalou os olhos e, afogueado, estarrecido, viu enfim a prova completar-se.
"Uh... caramba", balbuciou, na atrapalhação embasbacada de quem vê a verdade emergir como uma luz que encadeia. "Isto... uh... isto é... é incrível."
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"O que eu quero dizer é que o fato de estar tudo determinado significa que tudo o que aconteceu, acontece e acontecerá está previsto desde o nascer do tempo. Mesmo esta nossa conversa já estava prevista. É como se nós fôssemos actores num palco colossal, cada um a interpretar o seu papel, em obediência a um monumental guião escrito por um argumentista invisível quando o universo começou." Deixou a ideia assentar. "Está tudo determinado."
"Meu Deus..."
"E é este o argumento que faltava e que, aos olhos do professor Siza, veio transformar o Princípio Antrópico em prova da existência de Deus. O universo foi concebido com um engenho tal que denuncia inteligência e com uma afinação tal que denuncia um propósito. A nossa existência não tem a mínima hipótese de ser acidental pelo simples facto de que tudo está determinado desde o início."
XL
Abandonaram a Biblioteca Joanina lado a lado. A noite caíra sobre Coimbra e uma aragem fresca soprava baixo pelo quase deserto Pátio das Escolas. Tomás estacou num degrau e olhou para o relógio da torre; eram já nove da noite. Havia muito tempo que não comia, mas a angústia de saber que só dispunha de mais onze horas para resolver o enigma roubava-lhe o apetite. É certo que Luís Rocha já lhe desvendara uma significativa parte do mistério, mas faltava-lhe o derradeiro pormenor. A cifra que continha a fórmula de Deus.
"Diga-me uma coisa", murmurou Tomás. "Não faz idéia do que consiste a última mensagem cifrada por Einstein, pois não?"
O físico olhou-o de modo estranho.
"Venha comigo", disse, fazendo um gesto com a mão para o seguir.
Luís Rocha desceu os degraus e virou à esquerda, com Tomás no encalço.
Caminharam até à porta seguinte, no edifício situado ao lado da biblioteca. O
historiador cruzou o magnífico portal que decorava a porta e, quase sem querer, decerto por deformação de historiador, identificou-lhe logo o estilo manuelino.
"Isto é uma igreja?", interrogou-se.
"É a Capela de São Miguel", revelou o seu anfitrião, arrastando-o para o interior.
"Começou a ser erguida no século XVI."
As paredes apresentavam-se cobertas de azulejos azulados e o teto mostrava-se ricamente ornamentado com as armas de Portugal, mas o que dominava a capela era o soberbo órgão barroco incrustado na parede, à direita; tratava-se de um instrumento belíssimo, trabalhado ao pormenor, com anjos sentados no topo a soprar trompetes.
"Por que me trouxe aqui?", quis saber Tomás.
O físico sentou-se na ponta de um banco forrado a couro e sorriu.
"Não acha que faz sentido estarmos na casa de Deus quando estamos a falar de Deus?"
"Mas o Deus que você me apresentou não é o Deus da Bíblia", observou o historiador, fazendo um sinal com a cabeça para a imagem de Cristo crucificado sobre o altar.
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"Eu apresentei-lhe Deus, meu caro", retorquiu Luís Rocha. "O resto são detalhes, não acha?"
"Se você o diz..."
"Uns chamam-lhe Deus, outros chamam-lhe Yeovah, outros Allah, outros Brahman, outros Dharmakaya, outros Tao." Colocou a palma da mão ao peito. "Nós, os cientistas, chamamos-lhe universo. Diferentes nomes, diferentes atributos, a mesma essência."
"Estou a ver", comentou o historiador. "Mas isso não resolve o meu problema, pois não?"
"Qual é o seu problema?"
"Em que consiste a última mensagem cifrada por Einstein?"
Luís Rocha deslizou na bancada e fez sinal a Tomás, que permanecia de pé, para se sentar ao seu lado. O historiador fez-lhe a vontade, apesar da angústia que lhe roía a paciência.
"Conhece as matriuskas?", perguntou o físico.
"Quem?"
"As matriuskas."
"São aquelas bonecas russas, não são?"
"Sim. Quando se abre uma, há sempre outra por dentro." Sorriu. "Tal como uma matriuska, a descoberta da segunda via resolveu um enigma, mas revelou um outro.
Se Deus existe e concebeu o universo com uma afinação tal que determinou a nossa criação, tal parece indiciar que a nossa existência é o objetivo do universo, não é verdade?"
"É lógico."
"Mas isso não faz sentido, pois não?"
"Acha que não?", admirou-se Tomás. "Para mim faz todo o sentido."
"Faz sentido porque é uma constatação reconfortante", argumentou Luís Rocha.
"Afinal de contas, a ciência sempre nos disse que nós não passávamos de uma insignificância à escala do universo, absolutamente irrelevantes na imensidão da existência, não é? Havia físicos que até defendiam que a vida pouco mais era do que uma farsa e que a nossa presença não possuía qualquer utilidade."
"Pelos vistos estavam enganados."
"Pois", assentiu Luís Rocha. "Considerando que o universo foi incrivelmente afinado para criar vida e que isso não é nenhum acidente porque está determinado desde o início do tempo, sim, tenho
de concordar que os meus colegas estavam enganados. E, no entanto, a questão mantém-se: não faz sentido que a nossa existência seja o objetivo do universo."
"Mas por que diz isso?"
"Pela simples razão de que nós aparecemos numa fase relativamente inicial da vida do universo. Se fôssemos o objetivo, apareceríamos no fim, não é? Mas não aparecemos. Aparecemos pouco depois do início. Porquê?"
"Será que Deus estava com pressa em criar-nos?"
"Mas para quê? Para que nos divertíssemos? Para que pudéssemos passar o tempo a ver televisão? Para tomarmos uns copos numa esplanada? Para andarmos 321