Havia, claro, um segundo suspeito. O próprio David Ben Gurion. Afinal de contas, foi o antigo primeiro-ministro de Israel quem encomendou a Einstein a fórmula de uma bomba atômica fácil de preparar. Se Einstein codificou a mensagem num poema, sem dúvida que o fez sabendo que Ben Gurion possuía o livro de código que lhe permitiria descodificá-la. A ser assim, a Mossad israelita certamente que teria acesso a esse dicionário. Esta era, talvez, a hipótese mais interessante, dado que colocava o livro de código nas mãos do Ocidente. Uma vez que, na véspera, Tomás passara o poema ao homem da CIA em Teerão, presumiu que este já o tivesse remetido a Langley. Se isso fora feito, podia até dar-se o caso de, a essa hora, já a CIA ter descodificado a mensagem inserida no poema.
A análise da charada levou-os à mesa do restaurante do hotel. O almoço foi constituído por pratos inteiramente iranianos, com Tomás a experimentar um zereshk polo ba morq, ou galinha com arroz, e Ariana às voltas com um ghorme sabzi, uma 83
carne picada em feijão. Discutiram sucessivas possibilidades de descodificação do poema por entre as garfadas, a conversa prolongando-se quando chegou o paludeh, o gelado de farinha de arroz e fruta encomendado pelo português, e a melancia da iraniana.
"Acho que vou dormir uma sesta", anunciou Tomás depois do qhaveh, o café negro iraniano.
"Não quer trabalhar mais?"
"Ah, não", disse ele, elevando as mãos, como se anunciasse a sua rendição. "Já estou muito cansado."
Ariana fez um gesto na direcção da chávena de qhaveh.
"Não sei como vai conseguir dormir", riu-se a iraniana. "O nosso café é muito forte."
"Minha cara amiga, a sesta é uma velha tradição ibérica. Não há café que a vença."
X
Faltavam cinco minutos para as três da tarde quando Tomás saiu do elevador e calcorreou o lobby do hotel. Olhou em redor com o ar mais natural de que era capaz, tentando certificar-se de que ninguém o observava. Não havia sinais de Ariana, de quem se despedira meia hora antes, alegando que ia dormir a sesta; nem ninguém parecia prestar-lhe particular atenção. Aproximou-se do concierge, consultou discretamente o nome que rabiscara no papel e chamou o bell boy.
"Deve estar um táxi à minha espera", disse-lhe.
"Um táxi, senhor?"
"Sim. É o táxi do Babak."
O rapaz saiu à rua e fez sinal a um carro cor de laranja, que se encontrava estacionado à direita. O automóvel arrancou e veio posicionar-se na rampa, diante da entrada do hotel.
"Faz favor, senhor", disse o bell boy, abrindo-lhe a porta traseira.
Tomás parou junto à porta e, antes de entrar, olhou para o motorista, um rapaz tão magro que parecia um esqueleto.
"Você é o Babak?"
"Uh?"
"Babak?"
O homem fez que sim com a cabeça.
"Bale."
Tomás colocou uma moeda de cem riais na mão do bell boy e acomodou-se no assento de trás. O táxi arrancou e internou-se na corrente louca do trânsito de Teerão, virando e revirando pelo emaranhado de ruas e avenidas e travessas. O passageiro tentou meter conversa e perguntou para onde iam, mas Babak limitou-se a abanar a cabeça.
"Man ingilisi balad nistam", disse.
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Era evidente que não falava inglês. Percebendo que dali nada sairia, o português encostou-se ao assento e deixou-se guiar; sabia que alguma coisa iria acontecer, afinal de contas o homem da CIA não o mandara apanhar aquele táxi para o passear inutilmente pela cidade. Era uma questão de ter paciência e esperar.
O táxi deambulou durante vinte minutos pelas ruas de Teerão, com Babak sempre atento ao espelho retrovisor. Por vezes virava repentinamente para uma transversal e era nessas alturas que mais consultava o retrovisor; fez isso em ocasiões sucessivas, sempre utilizando a mesma técnica, até se dar por satisfeito e entrar na Avenida Taleqani. Parou nas imediações da Universidade Amirkabeir e um homem corpulento entrou no carro, sentando-se ao lado de Tomás.
"Como está, professor?"
Era o agente da CIA que conhecera na véspera.
"Olá." O português hesitou. "Desculpe, não me lembro é do seu nome."
O homem sorriu, revelando dentes estragados.
"Ainda bem", exclamou. "Chamo-me Golbahar Bagheri, mas, se calhar, é mesmo melhor nem memorizar o meu nome."
"Então que nome lhe posso chamar?"
"Olhe, chame-me Mossa."
"Mossa? De Mossad?"
Bagheri riu-se.
"Não, não. Mossa, de Mossadegh. Sabe quem foi Mossadegh?"
"Não faço ideia."
"Eu mostro-lhe." Disparou umas frases em parsi dirigidas a Babak. O automóvel arrancou e prosseguiu ao longo da mesma avenida. "Mohammed Mossadegh era um advogado que foi eleito democraticamente e nomeado primeiro-ministro do Irã. Na altura, os poços de petróleo existentes no país eram um exclusivo da Anglo-Iranian Oil Company e Mossadegh tentou melhorar as condições do negócio. Os britânicos recusaram e ele resolveu nacionalizar a companhia. Foi um ato com enormes repercussões, ao ponto de a revista Time o ter escolhido para figura do ano em 1951, por ter desse modo encorajado os países subdesenvolvidos a libertarem-se dos colonizadores.
Mas os britânicos nunca aceitaram a situação e Churchill conseguiu convencer Eisenhower a derrubar Mossadegh." Apontou para a esquerda. "Está a ver aquele edifício?"
Tomás olhou para o local. Era uma vasta construção, quase escondida atrás de muros decorados por palavras de ordem, a maior das quais era "Down with the USA".
"Sim, estou a ver."
"Esta é a antiga embaixada dos Estados Unidos em Teerã. Foi de um bunker da embaixada que a CIA engendrou o plano para derrubar Mossadegh. Chamou-se Operação Ajax. A custa de muitos subornos e a disseminação de contra-informação, a CIA conseguiu o apoio do Xá e de muitas figuras-chave do país, incluindo líderes religiosos, chefes militares e diretores de jornais, e derrubou Mossadegh em 1953."
Bagheri olhou para o edifício, onde se encontravam alguns milicianos armados. "Foi por causa desse episódio que, quando ocorreu a Revolução Islâmica, em 1979, os estudantes invadiram a embaixada americana e mantiveram uns cinquenta diplomatas como reféns durante mais de um ano. Os estudantes receavam que a 85
embaixada conspirasse contra o ayatollah Khomeini como conspirara contra Mossadegh."
"Ah", exclamou Tomás. "E o que achava você de Mossadegh?"
"Era um grande homem."
"Mas foi derrubado pela CIA."
"Sim."
"Então... desculpe, mas não estou a perceber. Você trabalha para a CIA."
"Trabalho para a CIA agora, mas não trabalhava em 1953. Aliás, nem sequer era nascido nessa altura."
"Mas como pode você trabalhar para a CIA se a agência derrubou esse grande homem?"
Bagheri fez um gesto resignado.
"As coisas mudaram. Quem está agora no poder não é um homem esclarecido, como Mossadegh, mas um bando de fanáticos religiosos que está a empurrar o meu país de volta à Idade Média." Apontou para os milicianos armados que deambulavam frente à antiga embaixada. "São eles o meu inimigo. E eles são também o inimigo da CIA, não é?" Sorriu. "Não sei se já ouviu este provérbio árabe, mas o inimigo do meu inimigo meu amigo é. Portanto, a CIA é agora minha amiga."