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Acordou.

Sentiu o suor frio banhar-lhe o topo da testa, a transpiração colando-lhe o pijama ao peito e às costas. Arfava. Tentou perceber se aquilo era a morte, mas não; com alívio, com terror, compreendeu enfim que vivia, o quarto escuro respondia-lhe com silêncio, o sossego revelava-lhe que tudo não passara afinal de um pesadelo, mas que o outro pesadelo, aquele em que o iraniano do bazar o havia envolvido na véspera, era bem real, palpável, iminente.

Empurrou os lençóis, sentou-se na cama e esfregou os olhos.

"Mas onde é que eu me fui meter?", murmurou.

Cambaleou para o quarto de banho e foi-se lavar. No espelho viu um homem com profundas olheiras, o previsível resultado de uma angustiada insónia que só acabou madrugada dentro. Sentia-se atirado a toda a velocidade pelos trilhos ondulantes de uma montanha-russa de emoções, ora deprimido pela perspectiva de cometer um ato terrível num país de horríveis castigos, ora esperançado por um súbito volte-face, uma mudança repentina, um qualquer acontecimento providencial que, quase por magia, resolvesse o problema e o libertasse daquele fardo pavoroso que lhe tinham inesperadamente colocado sobre os ombros.

Nesses momentos de esperança agarrava-se com todas as forças à conversa da véspera com Ariana. Com certeza que o ministro da Ciência perceberia a razoabilidade do seu pedido, considerou diante do espelho, numa pausa entre o acto de espalhar a espuma e o de passar a lâmina pelo rosto. O argumento de que a chave da mensagem cifrada se encontrava algures escondida no texto do manuscrito fazia perfeito sentido e era uma evidência tal que o ministro certamente não deixaria de a reconhecer. Sim, pensou, enquanto lavava agora os dentes. É inevitável que o autorizem a consultar o texto. E quando o consultasse podia ser que encontrasse todas as respostas de que a CIA precisava, podia ser que descobrisse coisas que tornassem desnecessário o furto do manuscrito, livrando-o assim de uma trapalhada para a qual não se sentia talhado.

Cerrou os olhos e murmurou uma promessa.

"Se me safar desta, prometo rezar todos os dias deste ano." Abriu um olho, avaliando a dureza da promessa. "Bem, todos os dias do ano também é de mais.

Rezarei todos os dias do próximo mês.

89

Respirando uma inesperada confiança, insuflada pela promessa, abriu o chuveiro, sentiu a temperatura da água e, quando se deu por satisfeito, pôs o pé e meteu-se lá dentro.

O vulto gracioso de Ariana apareceu no lobby um pouco depois da hora combinada, já Tomás tinha comido o pequeno-almoço e a aguardava impacientemente no sofá do bar. Cumprimentaram-se e a iraniana acomodou-se no lugar que ocupara na véspera, encomendando um sumo de laranja ao empregado. Mal conseguindo conter a ansiedade, o historiador foi direito ao assunto.

"Então? O ministro?"

"O que tem o ministro?"

"Ele autorizou?"

Ariana fez cara de quem só agora percebera a pergunta.

"Ah, sim", exclamou. "A autorização."

"Autorizou?"

"Bem... uh... não."

Tomás ficou especado a olhá-la, ouvindo e não acreditando que a ouvira.

"Não?", balbuciou.

"Não, não autorizou", disse Ariana. "Eu expliquei-lhe que você acha que o poema é uma mensagem codificada e que a chave do código se encontra no texto. Ele disseme que lamenta muito mas que, por razões de segurança nacional, você não pode ter acesso ao conteúdo do documento e que, se isso implicar um atraso na descodificação do poema, paciência."

"Mas... mas isso pode implicar até que não se decifre o poema de todo", insistiu o português.

"Você explicou-lhe isso?"

"Expliquei, claro que expliquei. Mas ele não quer saber disso. Diz que a segurança nacional está acima de tudo e que, quanto ao problema da descodificação, esse não é só um problema do Irã." Apontou para o seu interlocutor. "É também um problema seu."

"Meu?"

"Sim, seu. Não se lembra do agba Jalili dizer que você não será autorizado a sair do Irã enquanto não decifrar as charadas? O ministro confirmou-me que é mesmo assim. Aliás, parece que o caso foi até ao presidente." Ariana fez um gesto de resignação. "De modo que, Tomás, lamento muito mas você está condenado a deslindar aquelas mensagens ocultas."

O historiador respirou fundo e deixou cair os olhos para o mármore polido que brilhava no chão; sentia-se desanimado e encurralado.

"Estou tramado", comentou em tom de desabafo.

Ariana tocou-lhe no braço.

"Calma, não fique assim. Eu já vi que você é um excelente criptanalista. Vai conseguir deslindar estes enigmas, estou certa."

O português parecia quebrado de desalento, uma expressão tristonha desenhada no rosto. Na verdade, não tinha dúvidas de que seria capaz de descobrir as mensagens ocultas nas charadas; o pedido para consultar o texto do manuscrito devia-se, afinal, 90

mais à vontade de conhecer melhor o documento do que à convicção de que ele ocultava a chave do código. O verdadeiro problema é que a revelação de que o ministro não autorizava a consulta significava o desmoronar das suas derradeiras esperanças de resolver o problema sem o assalto que o homem do bazar lhe anunciara na véspera.

"Estou tramado", repetiu, o olhar sombrio.

"Ouça", disse Ariana, sempre tentando consolá-lo. "Não é caso para desanimar, você vai solucionar o problema. Além do mais, esta é até uma oportunidade para trabalharmos juntos durante algum tempo. Isso... isso não lhe agrada?"

Tomás pareceu despertar de um torpor.

"Hã?"

"Não lhe agrada trabalhar comigo durante todo este tempo?"

O historiador contemplou o rosto perfeito da iraniana.

"Isso é mesmo a única coisa que me impede de cometer suicídio agora mesmo", disse ele, quase mecanicamente.

Ariana riu-se.

"Você é engraçado, não há dúvida." Inclinou a cabeça. "Então do que está à espera? Vamos a isto!"

"A isto, o quê?"

"Vamos trabalhar."

Tomás pegou na folha com as mensagens, desdobrou-a e pousou-a sobre a mesinha.

"É isso, tem razão", exclamou, tirando a caneta do bolso. "Vamos trabalhar."

Passaram três horas a analisar os múltiplos significados simbólicos das diversas palavras-chave do poema, em particular Terra, terrors, Sabbath e Christ, mas nada encontraram para além do que já haviam concluído na véspera. Foi um trabalho frustrante, com todas as hipóteses rabiscadas num rascunho e logo riscadas, por se revelarem absurdas e inconsistentes.

Já perto da hora do almoço, Tomás pediu licença e dirigiu-se ao quarto de banho.

Ao contrário da maior parte dos quartos de banho iranianos, onde o local onde se fazem as necessidades é constituído por um imundo buraco aberto no chão, este dispunha de retrete, urinóis e até um cheirinho perfumado a flutuar no ar, ou não se tratasse aquele de um dos melhores hotéis do país.