"Isso significa alguma coisa?"
"Dersit? Não. Mas podemos separar isto. Fica Der sit. E sit pode ser... uh... ist. Aí sim, ficamos com um significado."
"Como é? Herrgott der ist?"
"Não. Ao contrário." Ariana reescreveu a linha. Ist Der Herrgott
"Ist der Herrgott."
"O que diabo quer isso dizer?"
"É o Senhor."
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O historiador voltou a analisar o poema, um brilho fascinado a relampejar-lhe nos olhos. Acabara de abrir a primeira racha na parede da charada.
"Caramba", exclamou. "Isto é mesmo um anagrama." Mirou a iraniana. "Você acha que consegue obter outras palavras alemãs a partir das restantes linhas?"
Ariana pegou na folha e estudou os três versos que sobravam.
"Não sei, nunca fiz isto."
"Quais são as palavras alemãs mais comuns?"
"Uh?"
"Quais são as palavras alemãs mais comuns?"
"Sei lá... uh... und, por exemplo, ou ist."
"Já temos aqui um ist. Poderá haver algum und?"
A iraniana analisou todas as letras do poema.
"Não, não pode haver und. Não há nenhum u no poema."
"Porra!", praguejou Tomás, algo desencorajado. "E ist? Haverá mais algum?"
Ariana apontou para o quarto e último verso.
"Está aqui", exclamou.
Pegou no lápis e sublinhou as três letras. Christ nite
"Boa", disse Tomás. "Vamos agora ver as duas primeiras letras de cada palavra.
Chni. Significa alguma coisa?"
"Não", devolveu ela. "Mas... uh... deixe ver, se invertermos as sílabas fica nich. A questão é saber se temos mais algum t. Já usamos um no ist."
"Está aqui outro t."
"Pois está. Dá nicht."
"Ora aqui está", exclamou o historiador. "Temos então ist e nicht neste verso.
Sobra o quê?"
"Sobra um r e um e."
"Re?"
"Não, espere", exclamou Ariana, muito excitada. "Er. Dá er."
"Er? O que significa isso?"
"Ist er nicht. Não vê?"
"Vejo, vejo. Mas o que significa?"
"Quer dizer ele não é."
Tomás pegou no rascunho e anotou as duas frases por baixo do segundo e quarto versos.
"E agora o resto?", perguntou ele. "Vamos ver o primeiro e o terceiro versos."
Os dois versos sobreviventes mostraram-se incrivelmente difíceis de decifrar.
Tentaram sucessivas combinações e Ariana teve de pedir um dicionário de alemão na recepção do hotel, de modo a testar novas possibilidades, sempre com Tomás a guiá-
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la. Abandonaram o restaurante e voltaram para o bar, ambos a ensaiarem palavras, a trocarem sílabas, a mudarem letras, a testarem diferentes significados.
Ao cabo de duas esgotantes horas, porém, a cifra deixou escapar o seu segredo. O
fim da resistência começou com a descoberta da palavra aber, no terceiro verso, o que lhes permitiu chegar enfim à formulação final. Com um sorriso triunfal, a iraniana escrevinhou no rascunho as quatro linhas ocultas no poema cifrado.
Raffiniert
Ist Der Herrgott
Aber boschaft
Ist Er nicht
"O que é isto?", perguntou Tomás, para quem o alemão encerrava ainda muitos mistérios.
"Raffiniert ist der Herrgott, aber boschaft ist er nicht."
"Sim, já percebi", disse ele, impaciente. "Mas o que significa isso?"
Ariana recostou-se no sofá, esgotada e revigorada, consumida pelo esforço e excitada pela descoberta, sentindo aquele enorme êxtase de quem escalou a montanha, atingiu o cume e, repousando no pico mais alto, contempla o mundo com serena admiração. Passou a língua pelos lábios sensuais e quase sorriu, saboreando a maravilhosa frase que Einstein encerrara naquele poema misterioso.
"Sutil é o Senhor", traduziu ela, num sussurro fascinado. "Mas malicioso Ele não é."
XIV
O automóvel negro percorreu com prudente vagar as ruas desertas da cidade, abandonadas ao vento frio que descia das montanhas e ao manto opaco da noite silenciosa. Os candeeiros projetavam sobre os passeios uma luz amarelada, fantasmagórica, e o clarão luminoso do mar de estrelas disperso pelo céu límpido, como pó de diamante cintilando na escuridão, irradiava uma leve claridade sobre o vulto adormecido das Alborz; era uma luminosidade muito suave, infinitamente tênue, mas suficiente para deixar perceber a mancha ebúrnea de neve que cobria as montanhas distantes como um véu de seda branca.
Meia-noite em Teerã.
Sentado no banco traseiro do carro, o casaco abotoado para se proteger do frio, Tomás contemplava as lojas e prédios e casas e mesquitas que se sucediam para lá da janela, os olhos presos nas fachadas nuas e passeios desertos, a mente a vaguear pelos contornos daquela aventura louca para a qual era arrastado sem apelo.
Encolhido no seu canto, não via como travar o curso dos acontecimentos, sentia-se absolutamente impotente, um insignificante náufrago entregue às águas revoltas do mar bravo, puxado por uma poderosa corrente que não sabia nem podia combater.
Devo estar louco.
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O pensamento martelava-o sem parar, obsessivo, quase mórbido, repetindo-se à medida que o automóvel palmilhava as avenidas e ruas e bairros da capital iraniana, avançando sempre, aproximando-se inexoravelmente do seu destino, chegando-se mais e mais ao instante temido, ao momento para lá do qual já não se podia voltar para trás. O ponto sem retorno.
Devo estar totalmente louco.
Babak seguia silencioso ao volante, os olhos irrequietos saltitando entre os cantos sombrios das ruas e o reflexo reluzente do retrovisor, sempre atento a qualquer movimento suspeito que obrigasse a abortar a operação. O vulto maciço de Bagheri plantava-se ao lado de Tomás, os olhos mergulhados na larga planta do Ministério da Ciência, estudando pela enésima vez o plano que gizara nos últimos dias, passando em revista os derradeiros pormenores. O homem da CIA viera vestido de preto e entregara a Tomás, ainda no hotel, um turbante negro iraniano, dizendo que o devia usar para se destacar menos. Além disso, obrigara-o a envergar as roupas mais escuras de que dispunha, alegando que só um louco fazia um assalto com trajos claros no corpo. Mas louco já Tomás se sentia, não havia louco mais louco do que aquele que, sem experiência nem treino, aceitava assaltar um edifício governamental com dois desconhecidos, num país de drásticas punições, para furtar um documento secreto que encerrava graves implicações militares.
"Nervoso?", perguntou Bagheri, rompendo o silêncio.
Tomás assentiu com a cabeça.
"Sim."
"É natural", sorriu o iraniano. "Mas fique descansado, vai correr tudo bem."
"Como pode você ter assim tanta certeza disso?"
Bagheri puxou a carteira do bolso e retirou uma nota verde de cem dólares, que exibiu ao historiador.
"Isto tem muita força."
O automóvel virou à esquerda, completou mais duas curvas e abrandou. Babak espreitou de novo pelo retrovisor, encostou ao passeio e estacionou entre duas camionetas. O motor calou-se e os faróis apagaram-se.
Chegamos?"
"Sim."
Tomás olhou em redor, tentando reconhecer o local.
"Mas o ministério não é aqui."
"É, sim", disse Bagheri, apontando para a esquina em frente. "Temos de ir a pé, é já ali à direita."
Apearam-se e sentiram a brisa gelada da rua penetrar-lhes na roupa. Tomás ajeitou melhor o casaco, enterrou o turbante negro na cabeça e caminharam os três pelo passeio até à esquina. Uma vez ali chegados, o historiador reconheceu enfim a rua e o edifício do outro lado, era de fato o Ministério da Ciência. Bagheri fez sinal para que ficassem ambos quietos e apenas Babak avançou, atravessando tranquilamente a rua e dirigindo-se ao ministério. O motorista mergulhou na sombra, junto ao posto da sentinela, e permaneceu invisível durante uns três minutos. O seu vulto magro e esguio reemergiu por fim da penumbra e fez um gesto para os dois avançarem.