Выбрать главу

"Passport?"

Sem possibilidade de mexer as mãos, Tomás baixou a cabeça e tocou com o queixo no lado esquerdo do peito.

"Está aqui."

Uma mão infiltrou-se-lhe no bolso interior do casaco e retirou os documentos. A algazarra prosseguia em redor, mas um característico som metálico metralhado, que não escutava havia já muito tempo, indicou-lhe que alguém preenchia um formulário com uma velha máquina de datilografar.

"Em que hotel está você alojado?", perguntou a mesma voz.

Fez-se silêncio na sala, todos pareciam de repente ter curiosidade em saber algo mais sobre o homem que acabara de ser detido.

Tomás estranhou a pergunta. Se lhe perguntavam em que hotel ele se encontrava é porque não o tinham ainda identificado nem percebido o que ele e Bagheri tentavam realmente fazer no ministério. Talvez houvesse uma hipótese de os convencer de que tudo aquilo não passava de um enorme equívoco.

"Estou no Simorgh."

A máquina de datilografar tiquetaqueou algo, presumivelmente esta resposta.

"E o que está a fazer no Irã?"

"Estou a trabalhar num projeto."

"Que projeto?"

"Um projeto secreto."

"Que projeto secreto?"

"Um projeto com o governo iraniano."

A voz fez uma pausa, avaliando esta resposta.

"Com o governo iraniano, é? Quem no governo iraniano?"

"O Ministério da Ciência."

Novo metralhar da máquina de datilografar.

"O que estava a fazer na Sala K?"

"A trabalhar."

"A trabalhar? A uma da manhã? E a entrar na Sala K sem autorização?"

"Precisei de ir ver algumas coisas."

"Por que não abriu a porta com a chave própria? Se tinha autorização, por que não desativou o alarme?"

"Havia alarme, é?"

"Claro que havia. A porta da Sala K está protegida por um sistema de alarme que comunica com as forças de segurança. Como pensa você que nós soubemos que havia 118

ali intrusos? Se tivesse usado a chave própria, o sistema teria sido automaticamente desativado."

"Tinha urgência em verificar umas coisas, o que quer? Não dispunha da chave ali à mão."

"Se assim era, por que razão abriram fogo contra nós?"

"Não fui eu quem disparou. Foi o outro. Achou que vocês eram assaltantes."

"Bem, já iremos ver isso", disse a voz.

Ouviram-se umas ordens em parsi, alguém arrancou Tomás da cadeira e levou-o para uma outra sala. Tiraram-lhe a venda e as algemas e o historiador constatou que se encontrava no que parecia ser um estúdio muito iluminado. Havia uma máquina fotográfica montada diante de si e dois focos de luz ligados em cima. Um homem atrás da câmara fez-lhe sinal para olhar para a lente e disparou uma fotografia. O exercício foi depois repetido de perfil, para a esquerda e para a direita. Quando o fotógrafo deu o seu trabalho por terminado, Tomás foi empurrado para um balcão onde o forçaram a deixar as suas impressões digitais registadas a tinta num formulário.

De seguida levaram-no para um balneário contíguo ao estúdio.

"Tire as roupas", ordenou um homem.

Tomás despiu-se até ficar nu, a tiritar de frio, os pêlos eriçados, os braços envolvendo o próprio corpo num esforço para se aquecer. O iraniano apanhou as roupas, colocou-as num cacifo e pegou no que parecia ser um pijama muito gasto, às riscas, feito com tecido áspero, de má qualidade.

"Vista isto", ordenou o mesmo homem.

Ansioso por algo que o protegesse do gelo, o português logo obedeceu. Uma vez vestido com toda a roupa de prisioneiro, despojado da sua individualidade, olhou para si e, vencendo os sentimento de humilhação e desespero que o colocavam à beira das lágrimas, não resistiu a pensar que parecia um irmão Metralha.

As primeiras vinte e quatro horas foram passadas numa cela imunda, úmida e com um penico coletivo, onde se acotovelavam mais quatro presos, todos iranianos.

Três deles só falavam parsi, mas o quarto, um homem idoso de óculos redondos e aspecto franzino, revelou-se fluente em inglês. Deixou Tomás chorar sozinho na primeira hora em que permaneceu na cela, mas depois, quando o historiador acalmou os nervos, aproximou-se e colocou-lhe a mão no ombro.

"A primeira vez é sempre a mais difícil", disse, a voz suave transmitindo conforto.

"É a sua primeira vez?"

Tomás passou a mão pela cara e balançou afirmativamente a cabeça.

"Sim."

"Ah, é terrível", insistiu o velho. "Da minha primeira vez chorei durante dois dias.

Senti uma vergonha muito grande, parecia que não passava de um vulgar ladrão. Eu, um professor de Literatura na Universidade de Teerã."

O historiador olhou-o com surpresa.

"Você é professor universitário?"

"Sim. Chamo-me Parsa Khani, leciono literatura inglesa."

"O que está aqui a fazer?"

119

"Oh, o costume. Sou acusado de me ter envolvido com jornais pró-reformistas, de falar mal do idiota do Khamenei e de apoiar o antigo presidente Khatami."

"Isso é crime?"

O velho encolheu os ombros.

"Os fanáticos acham que sim." Ajeitou os óculos. "Da primeira vez não vim para aqui, sabe?"

"Aqui, onde?"

"Esta cadeia. A minha primeira vez não foi em Evin."

"Erin?"

"Evin", corrigiu Parsa. "Esta é a cadeia de Evin, não sabia?"

"Não. Esta localidade chama-se Evin?"

O iraniano riu-se.

"Não, não. Esta é a cadeia de Evin, no Norte de Teerã. É uma cadeia muito temida. Foi construída nos anos setenta pelo Xá e era controlada pela sua polícia secreta, a SAVAK. Quando veio a Revolução Islâmica, em 1979, a prisão passou formalmente para as mãos do Gabinete Nacional de Prisões. Mas só formalmente. Isto aqui está agora transformado numa espécie de ONU dos vários poderes no Irão. A autoridade judicial controla a Secção 240 da cadeia, a Guarda Revolucionária controla a Secção 325 e o Ministério das Informações e Segurança manda na Secção 209.

Ainda por cima andam todos a competir entre si e às vezes até interrogam prisioneiros uns dos outros, é uma confusão que ninguém se entende."

"Nós estamos em que ala?"

"Estamos numa ala mista. Eu fui detido pelos imbecis da Guarda Revolucionária e são eles que me mantêm aqui. Você foi detido por quem?"

"Não sei."

"Qual o motivo pelo qual o prenderam?"

"Fui apanhado dentro do Ministério da Ciência à noite. É tudo um grande equívoco, espero que me libertem em breve."

"Dentro do ministério? Não era espionagem, pois não?"

"Claro que não."

Parsa fez um trejeito com a boca.

"Hmm, isso cheira-me então a delito comum", considerou. "Se assim for, eu acho que você está aqui sob a tutela da autoridade judicial."

Tomás apertou melhor a camisa da farda de presidiário, buscando mais calor.

"Acha que eles me deixam contactar uma embaixada da União Européia?"

O velho voltou a rir-se, mas sem humor.

"Se estiver com sorte, sim", exclamou. "Mas só depois de o espremerem bem."

"Como assim, espremerem-me bem?"

O iraniano suspirou, o olhar cansado.

"Ouça, senhor... uh..."

"Tomás."

120

"Ouça, senhor Tomás. O senhor veio para a cadeia de Evin, um dos sítios mais desagradáveis do Irã. O senhor tem alguma idéia do que aqui se passa?"

"Bem... não."

"Para lhe dar uma idéia, posso dizer-lhe que a minha primeira passagem aqui por Evin foi inaugurada por uma sessão de bofetadas. Depressa aprendi que se tratava apenas de um ligeiro tratamento introdutório, porque logo a seguir serviram-me uma refeição de chicken kebab. O senhor sabe o que é chicken kebab?"