"Não."
"Nunca comeu kebab num restaurante iraniano, senhor Tomás?"
"Ah, sim", reconheceu o historiador. "Kebab. E aquela espécie de sanduíche.
Puxa, já estou farto disso..."
"Eles aqui também servem chicken kebab."
"Ah, sim?"
"Sim. Só que, aqui em Evin, chicken kebab não é uma delícia gastronômica. É o nome que dão a um método de interrogatório."
"Ah."
"Primeiro prendem-nos os tornozelos e amarram-nos as mãos, depois põem os pulsos sobre os tornozelos e passam uma enorme barra de metal entre os ombros e a parte de trás dos joelhos, de modo a ficarmos quase na posição fetal. Levantam a barra, prendem-na a um ponto alto e nós ficamos assim pendurados, todos contorcidos, como uma galinha no espeto. E a seguir batem-nos."
Tomás esboçou um esgar horrorizado.
"Fizeram-lhe isso a si?"
"Sim, fizeram."
"Por criticar o presidente?"
"Não, não. Por defender o presidente."
"Por defender o presidente?"
"Sim. Khatami era naquela altura o presidente e pretendia fazer avançar reformas que pusessem fim aos exageros desses fanáticos religiosos, esses malucos que nos infernizam a vida todos os dias e fazem a glorificação da ignorância."
"E o presidente não o pode libertar?"
Parsa abanou a cabeça.
"O presidente já não é o mesmo, agora está lá um radical. Mas nada disso interessa. A grande verdade é que, quando ocupava a presidência, Khatami não tinha qualquer poder sobre estes imbecis. Eu sei que parece uma loucura, mas é assim que as coisas funcionam neste país. Isto não é como o Iraque, sabe, onde mandava o Saddam e todos se encolhiam. Aqui é diferente. Olhe, em 2003, por exemplo, o presidente Khatami ordenou uma inspeção a esta cadeia. Os seus homens de confiança vieram cá e tentaram visitar a Seção 209. Sabe o que aconteceu? Sabe?"
"Não."
"Os tipos do Ministério das Informações e Segurança não os deixaram entrar."
"Não deixaram?"
"Não."
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"E o que fizeram os homens do presidente?"
"Ora! Meteram o rabo entre as pernas e foram-se embora, pois claro." Fez um gesto resignado. "É para que você veja quem manda neste país."
"Incrível."
"Passam-se aqui em Evin as coisas mais inacreditáveis e ninguém pode fazer nada."
"Como essa tortura a que o submeteram."
"Sim, o chicken kebab. Mas há mais. Uma vez puseram-me no carrossel. Sabe o que é o carrossel?"
"Não."
"Amarraram-me com a barriga para cima a uma cama em forma de Y. Depois puseram-na a girar a grande velocidade e, enquanto cantavam, batiam-me em toda a parte." Respirou fundo. "Vomitei todo o jantar."
"Puxa."
O velho apontou para um dos companheiros de cela, um rapaz ossudo, com grandes olheiras.
"Ali o Faramarz passou por uma situação bem chata", disse. "Penduraram-no pelos pés no teto de uma sala, puseram-lhe um peso nos testículos e deixaram-no ali suspenso durante três horas, sempre com a cabeça para baixo."
Tomás estudou, horrorizado, o ar doentio de Faramarz.
"Acha... acha que me podem fazer o mesmo?"
Parsa acomodou-se no chão.
"Depende do que acharem que você andava a fazer no Ministério da Ciência", indicou, passando a língua pelos lábios finos. "Se acharem que estava a roubar, se calhar partem-lhe as mãos à pancada e depois condenam-no a uns anos de prisão. Se acharem que estava a fazer espionagem... bem, nem quero imaginar."
O historiador sentiu um terrível calafrio percorrer-lhe o corpo e começou a interrogar-se se, feitas as contas, não teria sido melhor ter utilizado a seringa que Bagheri lhe estendeu.
"Mesmo sendo estrangeiro, isso não..."
"Sobretudo sendo estrangeiro", atalhou Parsa. "E de uma coisa estou certo."
Apontou para o seu interlocutor. "Você não vai escapar à pior das torturas."
Tomás sentiu um baque no coração.
"Acha?"
"Todos passam por ela. É a mais eficiente."
"E qual... qual é?"
"O caixão."
"Como?"
"Uns chamam-lhe o caixão, outros a tortura branca. Seja quem for o homem, vai acabar por ceder. Todos cedem. Uns resistem três dias, outros aguentam três meses, mas todos acabam por confessar tudo. E se não confessam aqui em Evin, mandam-nos para a Prisão 59, que é muito pior. No fim, tudo os presos acabam por confessar.
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Confessam o que fizeram, confessam o que gostariam de ter feito e confessam o que não fizeram. Confessam o que eles quiserem."
"E... e... o que nos fazem eles?"
"Onde?"
"Nesse caixão."
"No caixão? Nada."
"Hã?"
"Nada."
"Não nos fazem nada? Não entendo."
"O caixão é uma cela solitária. Parece um caixão. Imagine o que é viver dias e dias num compartimento muito pequeno, quase do tamanho de um caixão, sem falar com ninguém nem ouvir ruído nenhum. Assim descrito não parece nada de especial, pois não? Sobretudo quando comparado com o carrossel ou o chicken kebab. Mas viver isso..." Abanou a mão. "Uf!"
"É assim tão mau?"
"É de loucos. Os caixões funcionam nas Seções, mas, como lhe disse, os piores nem são aqui os de Evin. Os piores são os dos centros de detenção."
"Centros de detenção?"
"Os jornais chamam-lhes nabadeh movazi, ou instituições paralelas. São tão clandestinas que nem sequer estão previstas na lei, embora sejam mencionadas na imprensa e até no parlamento. Pertencem às milícias basiji ou ao Ansar-e Hizbollah ou aos vários serviços secretos. Não estão assinaladas como prisões, não registam os nomes dos prisioneiros nem as autoridades governamentais têm acesso a informação sobre os seus orçamentos e organização. Os deputados e o presidente Khatami tentaram acabar com as nahadeb mozavi, mas não conseguiram."
"Como é isso possível?"
Parsa ergueu os olhos para cima, como se dirigisse a pergunta a uma entidade divina.
"Só no Irã, meu caro amigo", desabafou. "Só no Irã."
"Você já esteve num desses sítios?"
"Claro que sim. Para dizer a verdade, da primeira vez que fui detido nem vim aqui para Evin, sabe? Segui direitinho para a Prisão 59."
"Ah, sempre é uma prisão."
"Chamamos-lhe Prisão 59 ou eshraat abad, mas não está registada como prisão.
É a mais famosa das nahadeb mozavi."
"É aqui em Teerã?"
"Sim, a Prisão 59 encontra-se num complexo situado na Avenida Valiasr e é controlada pela Sepah, os serviços de informações da Guarda Revolucionária. Os caixões deste centro de detenção são os piores de todos. Ao pé deles, aqui os de Evin não passam de moradias luxuosas. Você nem imagina como aquilo é. Enlouquece-se numa única noite."
Quase sem querer, Tomás procurava-se situar nestas informações, imaginava-se a cada instante em cada uma das situações que lhe eram descritas.
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"Eles... eles costumam meter estrangeiros nesse sítio?", perguntou, a medo.
"Eles metem lá quem quiserem. Quem entrar na Prisão 59 é como se deixasse de existir. Aqui em Evin ainda há um registo dos prisioneiros. Lá não existe registo nenhum. Uma pessoa entra e depois pode reaparecer ou desaparecer para sempre, ninguém ali presta contas."
"Estou a ver."
"De modo que só tenho um conselho para lhe dar."
Fez-se uma pausa.
"Qual é?"
"Se tiver alguma coisa para confessar, confesse logo de início", disse o velho, a voz fatigada. "Ouviu?"
"Sim."
"Poupará a si próprio muito sofrimento."
Encafuado naquela cela imunda, o ar impregnado de uma mistura nojenta de odores a mofo, urina e fezes, Tomás passou toda a noite e manhã seguinte a decidir-se sobre o que iria ou não dizer quando fosse interrogado. Parecia-lhe evidente que jamais poderia confessar estar a trabalhar para a CIA, tal revelação seria equivalente à assinatura da sua sentença de morte.