Não podendo, portanto, expor a verdade, ficava nas mãos com o grande problema de explicar o inexplicável, isto é, justificar o arrombamento do cofre e a presença de Bagheri ao seu lado. Quando foi capturado, o historiador ficara com a impressão de que o seu companheiro iraniano tinha sido morto, mas não pudera confirmar isso e corria sempre o risco de Bagheri estar vivo e apresentar uma versão que o comprometeria. Além disso, mesmo que Bagheri estivesse morto, a sua ligação seria sempre um embaraço, jamais conseguiria dar uma explicação convincente para o facto de ter sido apanhado dentro do ministério com ele. Por outro lado, ainda que o homem da CIA se encontrasse morto, seria sempre possível à polícia identificá-lo e investigar as suas ligações. Os iranianos poderiam interrogar os seus familiares e amigos e revistar a sua casa. Não havia modo de saber o que descobririam, mas as hipóteses de virem a ligar Bagheri à agência secreta americana eram elevadas. E, se o fizessem, a pergunta seguinte era óbvia. O que estava Tomás a fazer com um agente da CIA, a meio da noite, no Ministério da Ciência, depois de terem arrombado um cofre onde era guardado um documento altamente secreto? Como explicar o inexplicável? E, como se tudo isto não bastasse, era preciso ainda não esquecer Babak. Teria sido o motorista apanhado? Se foi, o que revelaria ele? Se não foi, será que o podia ainda vir a ser?
"O que o preocupa?", perguntou Parsa.
"Tudo", exclamou Tomás.
"Mas você parece estar a conversar para si mesmo..."
"É o interrogatório. Estou a concentrar-me no que vou dizer."
"Conte a verdade", aconselhou o velho mais uma vez. "Poupará muito sofrimento inútil."
"Claro."
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Não podia dizer àquele desconhecido que não tinha modo de contar a verdade.
Parsa pareceu entender, porque logo virou a cara e fitou a luz do dia que jorrava pela janela gradeada.
"Mas se não puder contar a verdade", logo acrescentou, "dou-lhe um conselho."
"Qual é?"
"Não acredite em nada do que eles lhe disserem. Ouviu? Não acredite em nada."
Fitou Tomás, os olhos a brilharem. "Na minha primeira vez, quando fui para a Prisão 59, anunciaram-me que o presidente Khatami tinha fugido do país e que tinham prendido as minhas filhas e elas estavam a revelar coisas muito graves sobre mim.
Disseram tudo aquilo com o ar mais credível do mundo e pediram-me para assinar uma confissão, afirmando que era o melhor para mim, a única maneira de conseguir um perdão. Quando mais tarde fui libertado, apercebi-me de que nada do que me tinham dito era verdade. O presidente continuava em funções, as minhas filhas nunca foram presas."
Tomás passou horas às voltas com o problema do interrogatório, atormentado com as pontas soltas, as inconsistências, os absurdos da sua versão ficcionada.
Ruminou o assunto durante o almoço, enquanto engolia distraidamente um aguado caldo de galinha que um guarda lhe despejou numa tigela de alumínio, e foi ainda com a cabeça imersa no problema que, vencido pelo cansaço, adormeceu ao princípio da tarde, deitado sobre uma esteira estendida no chão frio e úmido da cela da ala comum da prisão de Evin.
XVII
Uma sacudidela violenta despertou Tomás do sono inquieto em que mergulhara durante várias horas. Abriu os olhos e viu um homem de feições brutas diante de si, a barba negra rala e o cabelo a faltar-lhe no topo da testa, as mãos grossas agarradas aos seus ombros, abanando-o com brusquidão. Olhou em redor, ainda meio atordoado, e notou que fazia escuro, a noite já caíra e a cela era iluminada pela mesma luz amarela bruxuleante da véspera.
"Acorrrde", disse o homem num inglês hesitante e com um sotaque iraniano muito forte.
"Uh?"
"O corrronel esperrra você. Deprrressa."
O homem puxou-o para cima, obrigando-o a pôr-se de pé; tirou um lenço do bolso e apertou-o em torno da cabeça e sobre os olhos do prisioneiro. Com Tomás devidamente vendado, o homem prendeu-lhe as mãos por detrás dos braços com algemas e arrastou-o para fora da cela. Voltaram a percorrer corredores e a subir e descer escadas, até que o recluso, sempre às escuras por causa da venda, entrou num compartimento aquecido e foi forçado a sentar-se num banco de madeira, as algemas ainda prendendo-lhe os braços atrás das costas.
Silêncio.
Tomás pressentiu uma presença no local. Ouviu um respirar leve e o som quebrado de estalidos de articulações, era evidente que havia alguém ali, mas a 125
verdade é que ninguém pronunciou palavra e o historiador permaneceu calado.
Passaram-se cinco minutos em silêncio, apenas se ouviam as respirações e os pequenos estalidos. O recluso remexeu-se no banco e sentiu algo à direita. Percebeu que era uma mesinha colada à braçadeira da cadeira, como os bancos das escolas.
Instantes depois sentiu o vulto sentar-se naquela mesinha e encolheu-se, intimidado.
Dez minutos de silêncio.
"Professor Noronha", disse finalmente a voz, num tom contido, como um leão que oculta o rugido feroz por baixo de um ronronar manso. "Bem-vindo ao nosso humilde palacete. Está bem instalado?"
"Quero falar com um diplomata da União Européia."
O desconhecido deixou passar mais uns segundos.
"O meu nome é Salman Kazemi e sou coronel do VEVAK, o Ministério das Informações e Segurança", disse, ignorando ostensivamente o pedido. "Tenho algumas perguntas para lhe fazer, se não se importa."
"Quero falar com um diplomata da União Européia."
"A primeira pergunta é óbvia. O que estava o senhor a fazer nas instalações do Ministério da Ciência e Tecnologia à uma da manhã?"
"Só falo depois de conversar com um diplomata da União Européia."
"Por que razão o senhor arrombou o cofre da Sala K e tirou do seu interior um documento da maior importância para a defesa e segurança da República Islâmica?"
"Quero falar com um diplomata da União Européia."
"O que tencionava o senhor fazer com o documento que retirou do cofre?"
"Eu tenho o direito de falar com..."
"Silêncio!", gritou o coronel sobre o seu ouvido direito, de repente fora de si. "O
senhor neste momento não existe! O senhor neste momento não tem direitos! O
senhor abusou gravemente da nossa hospitalidade e envolveu-se em atividades que podem ter posto em perigo a segurança da República Islâmica. O senhor esteve metido numa ação da qual resultou o ferimento de quatro homens das forças de segurança iranianas e um deles encontra-se neste momento internado no hospital em estado grave. Se vier a morrer, isso fará de si um homicida. Entendeu?"
Tomás permaneceu calado.
"Entendeu?", gritou ainda mais alto, a boca colada ao ouvido de Tomás.
"Sim", retorquiu o recluso, a voz muito baixa.
"Ainda bem", exclamou o coronel Kazemi. "Então faça o favor de responder agora às minhas perguntas." Fez uma pausa para recuperar a compostura e retomou o interrogatório num tom mais calmo. "O que estava o senhor a fazer dentro do Ministério da Ciência e Tecnologia à uma da manhã?"
"Só respondo depois de falar com um..."
Uma violenta pancada na nuca quase atirou Tomás ao chão.