"Tiveram as suas razões."
"Claro que tiveram", exclamou o recluso. "Razões de ciência."
"Razões de Estado."
"Desculpe, mas o que o senhor está a dizer não faz sentido nenhum. Repare, não é o Irã que diz todos os dias que deseja a energia nuclear para fins pacíficos? Não é o Irã que afirma que não quer desenvolver armas atômicas? Então como é que eu iria roubar ao Irã o que o país não tem nem tenciona ter?"
"Você é muito esperto..."
"Não é uma questão de esperteza, é uma questão de bom senso. Lembre-se que não fui eu que me fiz convidado para vir ao Irã. Foram vocês que me convidaram. Eu estava muito bem no meu cantinho, a fazer as minhas coisas, quando vocês me contactaram e me pediram para vir cá. Eu nunca..."
129
"Basta", cortou o coronel Kazemi. "Você é nosso convidado e não se portou como tal. Foi apanhado a meio da noite no Ministério da Ciência a arrombar um cofre onde era guardado um segredo de Estado. Quando aparecemos no local, você abriu fogo e feriu..."
"Não fui eu, foi o outro."
"Foi você."
"Não, já lhe disse que quem abriu fogo foi o outro."
"Quem era o outro?"
Tomás hesitou. Tinha ido para a sala determinado a nada dizer e apercebeu-se de que se tinha deixado envolver numa tal teia de conversa que quase contava já a história da sua vida.
"Exijo primeiro falar com um diplomata da União Européia."
"Como?"
"Exijo primeiro falar..."
Uma dor brutal, como um beliscão feroz, incendiou-lhe um ponto no pescoço e até viu estrelas estalarem-lhe nos olhos. Urrou de dor e levou um instante a perceber o que tinha acontecido.
O coronel apagara o cigarro no seu pescoço.
"Se isto não vai a bem, irá a mal", disse o oficial com uma voz neutra.
Kazemi emitiu umas ordens em parsi e Tomás sentiu de imediato movimento em redor. Preparou-se para o pior e quase se encolheu no banco, à espera das pancadas.
Várias mãos pegaram-lhe pelos braços e pela roupa de presidiário e obrigaram-no a pôr-se de pé.
"O que... o que me vão fazer?", perguntou, angustiado por a venda não o deixar perceber o que se passava em redor. "Vamos pô-lo a falar", foi a resposta seca de Kazemi.
"Vão-me torturar?"
"Não. Vamos fazer pior."
"Vão fazer o quê?"
"Vamos mandá-lo para a Seção 209."
Um caixão.
Quando Tomás, já desalgemado, foi atirado para o pequeno cubículo e pôde finalmente retirar a venda que lhe cobria os olhos e observar o local onde se encontrava, essa foi a primeira impressão com que ficou.
Puseram-me num caixão.
A cela revelou-se incrivelmente pequena. Era tão estreita que não conseguia sequer esticar os braços, tinha somente um metro de largura. De comprimento eram dois metros, apenas o suficiente para dar três pequenos passos, mas, na verdade, era apenas um passo e meio porque o resto estava ocupado por uma retrete e um lavatório. Virou a cabeça para cima e mediu a altura. Quatro metros, mais ou menos.
130
Uma pequena lâmpada iluminava a cela a partir do topo, Tomás calculou que teria uns quarenta watts, não mais. O chão parecia feito de cal e as paredes eram brancas, estreitas, opressoras, davam a impressão de esmagá-lo de todos os lados.
Um verdadeiro caixão.
Nunca na vida Tomás tinha estado assim apertado por paredes, tão apertado que foi assaltado pela distinta impressão de se encontrar enterrado vivo. Começou a sentir dificuldades em respirar e teve de fechar os olhos e erguer as narinas para cima para controlar o acesso de pânico que gradualmente tomava conta de si. Não se quis sentar naquele chão de cal e permaneceu de pé. Tentou dar um passo, mas um passo era mesmo a única coisa que conseguia dar, tão estreita era a cela, tão comprimido era o espaço.
Passou uma hora.
Os ataques de falta de ar e de quase pânico sucediam-se, a par de crescentes tonturas. Sentiu a claustrofobia de quem tinha sido encerrado num túmulo, atirado para uma sepultura de paredes brancas e superfície de cal e iluminada por uma pequena lâmpada de quarenta watts. Fatigado, encostou-se à parede.
Duas horas.
O silêncio era absoluto, asfixiante, sepulcral. Parecia-lhe incrível como era possível haver assim um silêncio de tal modo profundo, tão profundo que escutava a sua respiração como se fosse uma tempestade e ouvia o leve zunido da lâmpada como se se tratasse de uma enorme varejeira a zoar-lhe aos ouvidos. Sentiu as pernas fracas e sentou-se na cal.
Horas.
Perdeu a noção do tempo. Os segundos, os minutos, as horas sucediam-se sem que se conseguisse aperceber da sua passagem; era como se estivesse suspenso no tempo, perdido numa dimensão oculta, flutuando no esquecimento. Apenas via as paredes, a lâmpada, a sanita, o lavatório, o corpo, a porta e o chão. Ouvia o silêncio, a respiração e o zumbido da lâmpada. Lembrou-se que o velho da cela comum lhe dissera que havia solitárias piores, que na tal Prisão 59 se enlouquecia numa só noite, mas não conseguiu imaginar nada pior do que aquele sítio onde se encontrava. Tentou cantar, mas não conhecia a letra da maior parte das canções e contentou-se em trautear algumas baladas infantis. Murmurou ainda diversas melodias, umas atrás das outras, determinado a ser o gira-discos de si próprio. Começou a falar sozinho, mais para ouvir uma voz humana do que para dizer alguma coisa, mas, ao fim de algum tempo, calou-se, achou que estava já a fazer figura de doido.
"Allaaaaaaaaaaaaah u akbaaaaaaaaaaaaaaaar!”
A voz estridente e elétrica de um iraniano a berrar encheu de repente a cela.
Tomás deu um pulo e olhou em redor, atarantado. Era o som de um altifalante que reverberava no ar com uma chamada à oração. A chamada durou três ou quatro minutos, sempre com o volume no máximo, quase ensurdecedora, e depois parou.
Voltou o silêncio.
Era um silêncio sinistro, um silêncio tão profundo que até a vibração do ar lhe parecia zumbir aos ouvidos. Fechado naquele espaço apertado, incapaz de esticar os braços para os lados ou de dar dois passos na mesma direcção, a mente de Tomás começou a divagar em torno das suas circunstâncias, do desespero da sua situação, da futilidade da resistência. Para quê resistir se o fim já estava traçado? Não valeria mais antecipar o desfecho inevitável? Por que razão haveria de temer a morte se morto 131
já se encontrava ele ali? Sim, já estava morto sem estar morto, a verdade é que tinha sido enterrado num caixão e não passava agora de uma espécie de morto-vivo.
As refeições eram-lhe dadas em silêncio. O carcereiro abria uma pequena cancela rasgada na porta, entregava-lhe um prato metálico com comida, uma colher de plástico e um copo de água e meia hora depois vinha recolher os utensílios. Estes interlúdios para as refeições e a berraria nos altifalantes para a chamada às orações constituíam os únicos momentos em que o mundo exterior interferia com o caixão.
Tudo o resto era indefinido.
Uma espécie de mancha no tempo.
Tomás comia quando a cancela se abria e o prato aparecia, fazia as necessidades na sanita e deitava-se no chão quando tinha sono, encolhendo-se na posição fetal porque não dispunha de mais espaço e também porque era a única maneira de gerar calor para se aquecer. A luz da lâmpada encontrava-se permanentemente acesa e, encerrado naquele caixão de tijolo e cimento, o recluso não tinha maneira de saber que horas eram, quanto tempo passara, se era dia ou se era noite, se sairia dali em breve ou se o enterraram naquele caixão até ao esquecimento.