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Limitava-se a existir.

XVIII

O tilintar aparatoso de uma chave a rodar na fechadura despertou Tomás do longo torpor em que se encontrava mergulhado. O ferrolho emitiu diques sucessivos até a porta se abrir e um homem baixo de barba pontiaguda emergir do outro lado e espreitar o recluso.

"Vista isto", disse o iraniano, atirando um saco de plástico azul para o chão da minúscula cela.

O historiador acocorou-se e abriu o saco. Lá dentro encontravam-se as suas roupas, todas amarrotadas e amontoadas umas nas outras. Com a porta entreaberta, viu pela primeira vez em muito tempo a luz do dia espreitar num canto e teve vontade de desatar a correr e abraçar o sol, encher os pulmões de ar e viver aquele dia em toda a plenitude.

"Depressa", resmungou o homem, que se apercebera da forma sonhadora como Tomás contemplava a luz natural que entrava no corredor. "Despache-se."

"Sim, sim, já vou."

O historiador vestiu-se e calçou-se em dois minutos, ansioso por agarrar aquela oportunidade que inesperadamente lhe concediam de sair do caixão e respirar ar fresco. Mesmo que fosse para um duro interrogatório, mesmo que o submetessem ao chicken kebab de que lhe falara o velho preso que conhecera quando entrou na cadeia de Evin, tudo era melhor do que permanecer mais uma hora naquele sítio terrível, qualquer tortura era preferível a continuar enterrado vivo.

Quando terminou de se vestir e se pôs de pé, quase saltando de excitação por estar na iminência de abandonar a cela, o iraniano tirou um lenço do bolso e fez um gesto rotativo rápido com a mão.

"Vire-se."

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"Hã?"

"Vire-se."

Tomás voltou-se de costas para a porta e o iraniano colocou-lhe a venda nos olhos. De seguida puxou-lhe os braços para trás e algemou-o pelas costas.

"Vamos", disse então, puxando-o pelo braço.

O recluso tropeçou e ia caindo, mas embateu numa parede e conseguiu equilibrar-se, deixando-se puxar pelo carcereiro.

"Onde me leva?"

"Silêncio."

O carcereiro conduziu-o por um longo corredor, ao fim do qual começaram a subir umas escadas. A caminho da cela solitária, Tomás tinha ficado com a impressão de que a sua ala na Seção 209 se encontrava num subterrâneo, impressão que se adensou agora que dali saía. Atravessaram mais corredores e entraram no que parecia ser uma sala, onde o obrigaram a sentar-se num banco. Tomás remexeu-se no banco e sentiu a mesinha pegada à braçadeira, era um banco de escola igual ao do primeiro interrogatório, possivelmente seria até o mesmo banco e a mesma sala.

"Então?", perguntou uma voz familiar. "Divertiu-se muito no enferadi?"

Era o coronel Salman Kazemi outra vez.

"Onde?"

"No enferadi. A solitária."

"Exijo que me deixem falar com um diplomata da União Européia."

O oficial riu-se.

"Outra vez?", exclamou. "Ainda não parou com essa conversa?"

"Tenho direito a falar com um diplomata."

"Você tem é o direito de confessar tudo. Ao fim de três dias trancado no enferadi, já está disposto a falar?"

"Três dias? Passaram-se três dias?"

"Sim. Alguns acham que estar encerrado no caixão durante três dias chega. Será que já chegou para si?"

"Eu quero falar com um diplomata europeu."

Fez-se silêncio e o coronel suspirou com enfado, todo ele paciência a atingir o limite.

"Já vi que não chegou", disse, com um tom normalmente reservado às crianças que se portam mal. "Sabe, acho que nós aqui em Evin somos muito bonzinhos.

Demasiado bonzinhos até. É o nosso mal, sermos assim tão sentimentais e respeitadores dos direitos de patifes como você, escumalha que só merece que se lhe cuspa em cima." Voltou a suspirar. "Enfim." Ouviu-se o som de algo a ser escrito.

"Acabei agora de assinar a sua ordem de saída", anunciou o coronel.

"Ponha-se a andar daqui para fora."

Tomás nem queria acreditar no que acabara de ouvir.

"O senhor vai... vai libertar-me?"

Kazemi soltou uma gargalhada sonora.

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"Claro que vou. Aliás, já o fiz."

"Posso sair, é?"

"Pode e deve. A partir deste momento, já não pertence a Evin. Ponha-se na rua."

O historiador colocou-se de pé, incrédulo mas esperançado.

"Então quando é que me tiram isto dos olhos?"

"Ah, isso não tiramos."

"Não tiram? Porquê?"

"É simples. Acabei de assinar a sua ordem de saída. A partir deste momento, você já não está sob a tutela da cadeia de Evin. Você vai abandonar este estabelecimento e, a partir daquela porta, o que lhe vier a acontecer já não é da nossa responsabilidade."

"O que quer o senhor dizer com isso?"

Umas mãos puxaram brutalmente Tomás, arrastando-o para fora da sala, ainda com a venda nos olhos e os braços algemados atrás das costas. Carregado com violência pelo corredor, o historiador ainda ouviu Kazemi responder com sarcasmo à sua derradeira pergunta.

"Divirta-se na Prisão 59."

Uma mão empurrou a cabeça vendada de Tomás para baixo e o historiador foi atirado para o interior de um automóvel, as algemas ainda a prenderem-lhe os braços atrás das costas. Pela organização do espaço nos sofás presumiu que se encontrava no banco de trás, mas logo os desconhecidos pegaram nele e atiraram-no para os pés dos assentos, acomodando-se eles nos lugares e colocando os sapatos por cima de Tomás numa postura humilhante, pareciam caçadores a pisar a sua presa ou agricultores a calcar um mero saco de batatas.

O carro arrancou e embrenhou-se nas ruas de Teerão. Tomás sentiu o calor do sol embater-lhe na nuca e ouviu a orquestra de buzinadelas e motores do caótico trânsito da cidade. O automóvel virava para a esquerda e para a direita, sacudindo-o na sua desconfortável e vexatória posição, e o historiador teve de travar um soluço de choro que lhe assomou à boca, não via como escapar daquele inferno. A presença viva dos sons urbanos enchia-o de nostalgia pela liberdade perdida e tornava ainda mais dolorosa a sua situação.

Que estúpido fora, considerou, enquanto o corpo algemado era sacudido pelas guinadas do automóvel. Devia estar louco quando foi na conversa do americano da embaixada e aceitou meter-se naquela tremenda confusão. Se fosse hoje, pensou de si para si, se fosse hoje teria dito que não ao americano e teria logo a seguir dito que não aos iranianos; os americanos que arranjassem outro idiota para ir salvar o mundo e os iranianos que contratassem outro imbecil para decifrar as charadas deixadas por Einstein. Mas era demasiado tarde para lamentações, sabia-o Tomás. Além do mais, quando tomamos uma decisão nunca é com os dados que um dia viremos a ter, mas com aqueles que temos no instante em que decidimos e é com isso que temos de viver.

Por outro lado, raciocinou, talvez o mais importante fosse...

liiiiiiiiiii.

Uma travagem brusca interrompeu-lhe o raciocínio.

O carro imobilizou-se e uma gritaria irrompeu do interior, era o motorista a vociferar insultos em parsi e os homens que espezinhavam Tomás no assento de trás a vomitar ordens em catadupa, num grande alvoroço. Deitado aos pés do assento, o historiador ouviu o guinchar de mais travagens e o som surdo de portas a bater lá 134

fora. De repente a porta traseira do seu próprio automóvel foi aberta e ouviu uma voz a gritar em parsi para o interior. Os carcereiros responderam em voz baixa, pelo tom de voz pareciam a Tomás intimidados, o que o surpreendeu, e mais surpreendido ficou quando, de imediato, uma mão arrancou a venda dos seus olhos, deixando a luz do dia invadir-lhe os sentidos.