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"Depressa", ordenou uma voz iraniana em inglês. "Não temos muito tempo."

"Hã? O que... o que é?"

Alguém começou também a mexer nas algemas de Tomás. Pareceu-lhe primeiro que brincavam com as grilhetas, mas percebeu logo a seguir que lhe estavam a colocar umas chaves no ferrolho das algemas, o que se veio a confirmar instantes depois, quando sentiu as mãos soltarem-se.

"Venha", ordenou a mesma voz. "Rápido, rápido."

Tomás ergueu a cabeça e viu um homem encapuçado com uma meia e dois buracos rasgados no lugar dos olhos a puxá-lo para fora do carro. O indivíduo tinha uma pistola numa mão e atirou-o para um automóvel branco muito pequeno que se encontrava estacionado ao lado. O trânsito estava totalmente parado, ouviam-se buzinadelas por todo o lado e a rua vivia uma cena irreal, com outros homens armados e encapuçados a guardarem um perímetro de segurança em torno da viatura de onde o recluso foi arrancado. Uma vez Tomás instalado no banco de trás, a porta fechou-se com estrondo e o segundo carro arrancou, desaparecendo de imediato por uma ruela lateral.

Toda a operação não tinha durado mais de uma centena de segundos.

O motorista era um homem de malares muito salientes e um largo bigode negro, as mãos peludas firmemente agarradas ao volante. Logo que sentiu o coração acalmar-se e as coisas a regressarem gradualmente à normalidade, Tomás inclinou-se para a frente e tocou-lhe no ombro.

"Para onde vamos?", quis saber.

O homem olhou-o de relance, parecia quase surpreendido por o passageiro se lhe dirigir.

"Uh?"

"Para onde vamos?"

O iraniano abanou a cabeça.

"Ingilisi balad nistam."

"Não fala inglês? Ingilisi? Na ingilisi?"

"Na", confirmou o homem, quase satisfeito por se fazer entender. "Ingilisi balad nistam."

"Porra."

O homem bateu com força no peito.

"Esman Sabbar e."

"Hã?"

Bateu novamente em si.

"Sabbar", repetiu. "Sabbar. Esman Sabbar e."

135

"Ah. Tu chamas-te Sabbar? Sabbar?"

O motorista abriu-se num sorriso desdentado.

"Bale. Sabbar."

O carro meteu por ruas sucessivas, virando para um lado e para o outro. Sabbar parecia sempre atento a tudo o que se passava em redor, os olhos saltitando a todo o instante entre o retrovisor e o percurso, o passeio e a rua, as esquinas e os cruzamentos, certificando-se de que não eram seguidos nem ninguém os observava.

Aproximaram-se do que parecia ser uma oficina cheia de carros e sem mecânicos e o motorista guinou o automóvel, metendo-o lá dentro. Sabbar saltou cá para fora e fechou o portão, cortando o contato com o exterior e assegurando a privacidade. Fez sinal a Tomás para sair também e levou-o para junto de um velho Mercedes preto estacionado ao lado. Abriu a porta de trás do grande automóvel e tirou um enorme tecido negro do interior, que estendeu na direcção do historiador, como se lhe oferecesse uma prenda.

"É para mim?"

"Bale", retorquiu Sabbar, fazendo-lhe sinal com a mão para que vestisse aquela peça.

Tomás esticou o tecido e sorriu quando se apercebeu do que se tratava. Era um chador. A peça apresentava-se toda negra, parecia-lhe um dos mais conservadores e inestéticos chador que havia no mercado, com um rendilhado no lugar da cara para deixar ver e respirar.

"Espertos", comentou. "Querem-me fazer passar por mulher, é?"

"Bale", insistiu o motorista.

Tomás colocou o chador, deixando-o cobri-lo até aos pés, e voltou-se para Sabbar, as mãos nas ancas por baixo do manto.

"Então? Estou bem?"

O iraniano analisou-o de uma ponta à outra e riu-se.

"Khandedar e."

O historiador não percebeu, mas presumiu, pelo ar divertido do motorista, que estava tudo bem. Encolheu o corpo e instalou-se no banco de trás do Mercedes preto.

Sabbar colocou um boné de motorista na cabeça, reabriu o portão, entrou no automóvel, tirou-o da garagem, voltou a fechar o portão e arrancou com o Mercedes pelas ruas de Teerão, parecia agora o chauffeur de uma qualquer abastada e conservadora matrona iraniana.

Com o carro em movimento, Tomás baixou o vidro traseiro e deixou o ar poluído pelos escapes penetrar no interior. Apesar do grosso manto que lhe cobria o corpo e que apenas lhe deixava vislumbrar o mundo através do apertado rendilhado que lhe tapava o rosto, respirou fundo e sentiu, quase extasiado, o aroma da liberdade. Aquele rendilhado obscurantista atrapalhá-lo-ia em qualquer outra circunstância, roubar-lhe-ia o ar, fá-lo-ia asfixiar; mas não ali, não naquele momento, não depois de ter passado três dias encerrado num caixão de cimento e a última hora de olhos vendados, não sabendo se alguma vez voltaria a ver a luz do dia, o profundo céu azul, as nuvens alvas e esponjosas, o palpitar excitado de uma cidade atarefada e transbordante de vida.

Como era boa a liberdade.

136

Sentiu um peso descarregar-se dos ombros, uma opressão a desfazer-se no peito, e gozou, inebriado e exaltado, o delicioso travo daquele sublime momento de libertação. Estava livre. Livre. Parecia-lhe agora que acabara de despertar de um pesadelo, sentiu até alguma dificuldade em acreditar que lhe tinha mesmo acontecido o que acontecera, chegou a interrogar-se se tudo não teria afinal passado de um sonho mau, tão incrível e irreal foi a aventura que viveu. Mas se era pesadelo, já tinha despertado; se era realidade, estava agora livre dela. A verdade é que o ar da rua lhe enchia as narinas com o odor enjoativo do gasóleo queimado e nunca como agora tão repugnante cheiro lhe soube a tão perfumado bálsamo.

O Mercedes cirandou pelas ruas de Teerã durante mais de vinte minutos. Passou pela zona do bazar e bordejou o magnífico complexo do Palácio Golestan, com as suas fachadas suntuosas, dominadas por soberbas torres e cúpulas, as estruturas trabalhadas erguendo-se por entre a verdura de um jardim cuidadosamente tratado.

Com o Palácio Golestan para trás, o automóvel foi contornar a grande Praça Imam Khomeini e meteu por uma longa avenida, paralela a um enorme parque ajardinado. Quando chegou ao fundo do parque, virou à direita e estacionou devagar junto a um prédio novo. Compenetrado no seu papel de chauffeur de luxo, Sabbar saiu do carro e veio cá atrás abrir a porta, fazendo uma vênia no momento em que o vulto escuro da "matrona" iraniana se apeou.

O motorista conduziu depois a figura de chador até à porta do prédio e carregou num botão do quadro metálico de intercomunicação. Uma voz elétrica soou do altifalante, interpelando os recém-chegados, e Sabbar identificou-se. Um zumbido fez estalar a fechadura da porta, que se soltou com um clique seco. O iraniano olhou para Tomás e esboçou um gesto com a cabeça, como que a pedir que o historiador o seguisse. Entraram no lobby do prédio e carregaram num botão para chamar um elevador. Apanharam o ascensor e subiram ao segundo andar.

Uma iraniana gorducha, vestida com uma leve e dourada shalwar kameez, esperava-os à porta do elevador.

"Bem-vindo professor", saudou. "Fico contente de o ver livre."

"Não mais do que eu, de certeza."

A mulher sorriu.

"Calculo."

Entraram num apartamento e Sabbar desapareceu no corredor. A iraniana rechonchuda fez sinal a Tomás para entrar na sala e acomodar-se no sofá.

"Pode tirar o chador, se quiser", disse.

"Com certeza que quero", exclamou Tomás.

Inclinou o corpo e puxou o longo tecido negro, até ficar com a cabeça cá fora, os cabelos castanhos num torvelinho revolto, mas livre daquele aperto.