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"Sente-se melhor?"

"Muito", suspirou o historiador. Deixou-se cair no sofá e tentou descontrair.

"Onde estamos?"

"No centro de Teerã. Junto ao Parque Shahr."

Olhou pela janela. As árvores alinhavam-se a poucas centenas de metros de distância, o aprazível verde das copas a contrastar com o desagradável cinzento sujo da urbe.

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"Pode-me explicar o que se passa? Quem são vocês?"

A iraniana sorriu com bonomia.

"O meu nome é Hamideh, mas receio que não tenha liberdade para lhe explicar o que quer que seja. Já aí virá alguém que lhe fornecerá todas as respostas."

"Quem?"

"Tenha paciência", disse, baixando os olhos. "Deseja tomar alguma coisa?"

"Está a brincar comigo? Claro que sim, estou esfaimado", exclamou. "O que tem aí?"

"Ora... deixe cá ver", hesitou, pensativa. "Temos bandemjun e também gborme sabzi."

"Isso é comida?"

"Sim, claro."

"Então traga tudo. Tudo."

Hamideh levantou-se e desapareceu pelo corredor, deixando Tomás sozinho na sala. O historiador sentia-se extenuado e fechou os olhos, tentando descansar um pouco.

Ziiiiiitn.

Um som inesperado fê-lo despertar de imediato. Alguém tocara à campainha.

Ziiiiiitn.

Era o segundo toque.

Ouviu passos pesados a aproximarem-se pelo corredor e viu a vasta figura colorida de Hamideh rolar pelo hall do apartamento, mesmo em frente à sala de estar.

A iraniana pegou no telefone de intercomunicação e trocou umas palavras em parsi.

Pousou depois o telefone e virou a cabeça para mirar Tomás.

"Já aí vem quem lhe poderá explicar tudo."

Hamideh tirou a corrente de segurança, abriu a porta de entrada e afastou-se, mergulhando de regresso ao corredor em direção da cozinha para ir preparar os pratos solicitados pelo hóspede.

Tomás ficou sentado no sofá, expectante, os olhos presos naquela porta entreaberta, a atenção fixa no que se passava para lá dela. Ouviu o barulho do elevador a descer, a parar e a subir. Viu o clarão do ascensor emergir gradualmente no segundo andar, a caixa dar um solavanco e parar, a porta abrir-se com um estalido. A figura que tudo explicaria era primeiro um vulto, uma sombra, mas logo adquiriu contornos e transformou-se numa pessoa.

Olharam-se.

Quando ela saiu do elevador, o que mais surpreendeu Tomás não foi ser quem era; foi não ter sentido qualquer surpresa por ser quem era. É como se sempre tivesse sabido que assim seria, como se tivesse desejado que a resposta fosse aquela, como se a esperança se tivesse tornado realidade, como se o pesadelo se tivesse transformado num sonho, como se aquele não passasse afinal do desfecho natural de tudo o que vivera e pensara e sentira naquela última e intensa semana.

Com os olhos verdes a embaciarem-se de lágrimas, Tomás viu a figura alta e esguia estacar na porta da entrada, hesitante. Ficaram parados a fitar-se, ela com os 138

grossos lábios levemente separados, farrapos soltos de cabelo negro descaindo-lhe sobre a testa ebúrnea, os belos olhos cor de mel cravados em si numa expressão de desassossego, de ansiedade, de alívio.

De saudade.

"Ariana."

XIX

Enquanto devorava a carne picada, o feijão e as verduras do suculento gborme sabzi servido por Hamideh, Tomás relatou a Ariana tudo o que lhe sucedera nos últimos quatro dias. A iraniana escutou-o em silêncio, sobretudo atenta aos pormenores decorridos na cadeia de Evin, abanando a cabeça com tristeza ao ouvir o tratamento que lhe foi dispensado no interrogatório ou os detalhes da vida na cela solitária.

"Infelizmente há muita gente que passa por isso", comentou ela. "E Evin nem é dos piores sítios."

"Sim, parece que há a tal Prisão 59, para onde me estavam a transferir."

"Oh, existem muitas. A Prisão 59, na Valiasr, é talvez a mais famosa, mas há outras ainda. Por exemplo, a Prisão 60, o Edareh Amaken, a Towhid. Por vezes, quando sobe a contestação a estes centros ilegais de detenção, eles fecham umas instalações e abrem outras novas logo a seguir." Abanou a cabeça. "Ninguém tem mão nisto."

"E como é que você soube onde eu estava?"

"Tenho contatos com gente ligada ao Gabinete Nacional de Prisões, pessoas que me devem favores. O Gabinete tem a tutela da cadeia de Evin, embora isso seja mais uma formalidade do que outra coisa, não é? A verdade é que aquilo está entregue a outras organizações. Mas, de qualquer modo, o Gabinete sempre vai sabendo o que se passa lá dentro. Quando me disseram que você tinha sido detido, fiquei mortalmente preocupada e mexi os meus cordelinhos. Eu sabia que o esperava um mau bocado em Evin, mas, ao menos, havia a consolação de que estava numa prisão legalizada e não lhe podiam fazer nada que não ficasse registado. A minha maior preocupação era se o mandavam para um centro ilegal de detenção. Aí eu perder-lhe-ia o rasto e, pior do que tudo, não havia qualquer garantia de que você pudesse alguma vez reaparecer.

Falei, por isso, com uns amigos ligados aos movimentos reformistas e pedi-lhes ajuda."

"Quiseram ir buscar-me a Evin, foi?"

"Não, não. Enquanto você estivesse em Evin, nada poderíamos fazer. Evin é uma prisão legal, seríamos todos fuzilados se fôssemos apanhados a tentar libertá-lo. A transferência para os centros de detenção é que era o ponto crucial e por dois motivos.

Por um lado, porque era o momento em que você saía à rua, o que tornava mais fácil chegar ao pé de si. Por outro, havia a questão legalista. Como os centros de detenção são ilegais, quando saísse de Evin você tecnicamente já não se encontrava detido. Se nós fôssemos apanhados, éramos acusados de quê? De fazer parar o trânsito? De evitar uma detenção ilegal? Você era, nesse instante e para efeitos formais, uma pessoa livre e esse seria sempre o nosso ponto de defesa."

"Estou a entender."

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"A questão essencial era obter a informação da sua transferência, o que, considerando os meus contatos dentro do Gabinete Nacional de Prisões, não constituía uma tarefa particularmente difícil. Tanto assim era que fui informada ontem da sua transferência esta tarde para a Prisão 59 caso continuasse a recusar-se a colaborar, de modo que tivemos quase vinte e quatro horas para montar a operação."

Tomás colocou o prato de lado e estendeu o braço, tocando suavemente na mão de Ariana.

"Você foi extraordinária", disse ele. "Devo-lhe a vida e nem sei como lhe agradecer."

A iraniana estremeceu, fitando-o com os olhos arregalados, devolvendo o toque com outro toque, mas um ruído proveniente do corredor fê-la olhar de relance para a porta da sala, uma expressão ligeiramente apreensiva desenhada no rosto.

"Uh... eu...", balbuciou. "Não... não fiz mais do que o meu dever. Não podia deixar que o matassem, não é?"

"Claro que fez muito mais do que o seu dever", disse Tomás, acariciando-lhe a mão. "Muito mais."

Ariana voltou a olhar de relance para a entrada da sala e retirou a mão, ansiosa.

"Desculpe", disse. "Tenho de ter cuidado, sabe? A minha reputação..."

O historiador sorriu sem vontade.

"Sim, compreendo. Não a quero embaraçar."

"É que estamos no Irão, percebe? E sabe como isto é..."

"Então não sei?"

A bela mulher olhou para o tapete persa estendido no chão, constrangida, era evidente que vivia um conflito. Fez-se um silêncio atrapalhado, aquele toque carinhoso entre os dois atuou como um feitiço inesperado. Quebrou a fluidez da conversa, é certo, mas também ateou alguma coisa; ou talvez não tenha ateado, talvez tenha apenas tornado visível o que já existia, aquela espécie de incêndio lento que ardia cá dentro, em lume brando, mas que ardia sem parar, e era a consciência desse incessante fogo oculto que mais a atrapalhava.