"Tomás", disse ela por fim. "Tenho uma pergunta delicada para lhe fazer."
"Tudo."
Ariana hesitou, percebia-se que procurava as palavras certas para formular a pergunta.
"O que estava você a fazer no Ministério da Ciência à uma da manhã?"
Tomás fitou-a com intensidade, mas também com embaraço. Queria responder-lhe a tudo, a tudo mesmo, exceto àquela pergunta. Aquela era a única pergunta que não estava preparado para responder e experimentou nesse instante um terrível dilema. Até que ponto poderia contar a verdade à mulher que todos os riscos correu para o salvar?
"Quis ir ver o manuscrito."
"Isso eu entendo", disse ela. "Mas, à uma da manhã? E arrombando a porta da Sala K e do cofre?"
Eram excelentes perguntas. Tomás sentiu uma enorme vontade de abrir o coração e revelar tudo, mas teve consciência de que não podia; a verdade era demasiado grave, demasiado terrível, significava que, de algum modo, também a tinha 140
traído, também abusara da sua confiança e da sua amizade. Além disso, a cabeça de Tomás encontrava-se programada para negar a todo o transe a ligação à CIA e para contar uma história fantasiada que congeminara na cela solitária, e não era naquele instante que seria capaz de a desprogramar.
"Eu... uh... senti uma curiosidade incontrolável de ver o manuscrito. Precisava de o ver para poder ter a certeza de que... de que não estava envolvido num projeto militar."
"Um projecto militar?"
"Sim. A vossa recusa em deixar-me ler o manuscrito ou em explicar-me o seu conteúdo pareceu-me suspeita. Com toda esta polémica internacional em torno do projeto nuclear iraniano, mais a ONU metida ao barulho e as sucessivas ameaças americanas, e considerando ainda algumas coisas que você me tinha deixado entender, confesso que fiquei muito preocupado."
"Estou a ver."
"Comecei a questionar-me, sabe? Comecei a interrogar-me sobre que confusão era esta em que eu me havia metido. Precisava de me certificar do que se estava a passar."
"E o homem que se encontrava consigo? Quem era?"
O fato de Tomás já se ter esquecido do seu verdadeiro nome, Bagheri, tornou a sua resposta mais convincente.
"O Mossa? Foi um tipo que encontrei no bazar."
"Mossa, é? Como Mossadegh?"
"Sim", confirmou Tomás. "Sabe o que lhe aconteceu?"
"Sei. Ficou ferido naquela noite e morreu horas depois, já no hospital."
"Coitado."
"Você encontrou-o no bazar, foi?"
"Foi. Disse-me que era perito em arrombamentos. Quando vi tanta reticência da vossa parte em mostrar-me o manuscrito ou em descrever-me o seu conteúdo e quando ouvi as notícias sobre as suspeitas americanas em torno do programa nuclear iraniano, fiquei preocupado com o projeto em que estava metido. Só um idiota é que não ficaria, não acha? De modo que decidi contratá-lo." Fez um gesto vago. "O resto já você sabe."
"Hmm", murmurou Ariana. "O mínimo que se pode dizer é que você foi imprudente, Tomás."
"Tem razão", concordou ele. Inclinou-se no sofá, como se lhe tivesse acabado de ocorrer uma idéia. "Deixe-me agora ser eu a fazer-lhe uma pergunta delicada."
"Diga."
"O que diz exatamente o manuscrito de Einstein?"
"Desculpe, mas não lhe posso revelar. Uma coisa é salvá-lo, outra é trair o meu país."
"Tem razão. Esqueça." Fez um gesto rápido com a mão, como quem quer afastar o assunto.
"Mas talvez haja uma coisa que me possa responder", adiantou.
"O quê?"
141
"O que aconteceu ao professor Siza?"
A iraniana soergueu um sobrolho.
"Como sabe que o professor Siza tem algo a ver conosco?"
"Posso ser distraído, mas não sou estúpido, não é?"
Ariana esboçou uma expressão constrangida.
"Também não posso falar sobre isso, lamento."
"Porquê? Isso não envolve traição ao seu país, suponho."
"Não é isso", argumentou ela. "A questão é que, se os meus chefes se aperceberem de que você sabe muita coisa que não é suposto, as suspeitas vão inevitavelmente recair sobre mim."
"Tem razão, tem razão. Esqueça."
"Mas há uma coisa que lhe posso revelar."
"O quê?"
"Hotel Orchard."
"Como?"
"Existe uma ligação entre o professor e o Hotel Orchard."
"Hotel Orchard? E onde é isso?"
"Não faço a mínima idéia", retorquiu Ariana. "Mas o nome desse hotel está escrito a lápis, com a letra do professor Siza, nas costas de uma folha do manuscrito de Einstein."
"Ah, sim?", admirou-se Tomás. "Curioso..."
Ariana virou o rosto para a janela e suspirou. O sol punha-se por detrás da linha recortada de prédios, pintando o azul do céu com veios púrpura e violeta e desenhando curiosas sombras nos farrapos de nuvens que flutuavam perto do horizonte urbano.
"Temos de o tirar daqui", disse ela, sempre a fitar a janela, um traço de angústia a embargar-lhe a voz.
"Deste apartamento?"
"Do Irã." Encarou Tomás. "A sua presença constitui agora um grande perigo para si, para mim e para todos os meus amigos que ajudaram a libertá-lo."
"Compreendo."
"O problema é que não vai ser fácil colocá-lo fora do país."
O historiador franziu a testa.
"Eu sei de uma maneira."
"Uh?"
"Eu sei de uma maneira."
"Qual?"
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"O Mossa tinha preparado as coisas e explicou-me os pormenores essenciais. Há um barco de pesca à minha espera numa cidade portuária iraniana."
"Ah, sim? Onde?"
"Uh... esqueci-me do nome."
"É no golfo Pérsico?"
"Não, não. Lá para cima."
"No mar Cáspio?"
"Sim. Mas não me lembro do nome da terra." Fez um esforço de memória. "Porra, devia ter tomado nota em qualquer sítio."
"Seria Nur?"
"Não, isso não. Lembro-me que era um nome grande."
"Mahmud Abad?"
"Uh... não sei... talvez, não tenho a certeza..." Voltou a puxar pela memória.
"Lembro-me que tinha qualquer coisa a ver com umas ruínas de Carlos Magno ou Alexandre, o Grande..."
"A Muralha de Alexandre?"
"Sim, pode ser isso. Soa-lhe familiar?"
"Claro. A Muralha de Alexandre marca os limites da civilização e situa-se perto da fronteira com o Turcomenistão. Liga a zona das montanhas Golestan ao Cáspio."
"Foi construída por Alexandre, o Grande, é?"
"É o que diz a lenda, mas não é verdade. A muralha foi erguida algures no século VI, não sei bem por quem."
"E há alguma cidade portuária ali perto?"
Ariana levantou-se do sofá e foi ao armário. Tirou um atlas de uma prateleira e voltou ao seu lugar, abrindo no regaço o enorme volume na página do Irão. Analisou a linha de costa do mar Cáspio e fixou-se no porto mais próximo da muralha.
"Bandar-e Torkaman?"
"Uh... sim, acho que é isso." Tomás foi sentar-se ao lado dela e inclinou-se sobre o mapa. "Mostre lá."
A iraniana pousou o dedo sobre o ponto no mapa a assinalar a povoação.
"Está aqui."
"É isso", repetiu Tomás, agora mais convicto. "Bandar-e Torkaman."
"E o que se passa em Bandar-e Torkaman?"
"Está lá um barco à minha espera... acho."
"Que barco?"
"Julgo que é um pesqueiro, mas não tenho a certeza."
"Há muitos pesqueiros no Cáspio. Se o vir, conseguirá identificá-lo?"