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Novo esgar pensativo.

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"É um nome pequenino, igual ao da capital do... do Azerbaijão ou de um outro ão qualquer da zona."

"Baku?"

"Isso. Baku. É esse o nome do barco."

Ariana voltou a analisar o mapa.

"Não há tempo a perder", disse ela. "Temos que o pôr o mais depressa possível em Bandar-e Torkaman."

"Acha que dá para partir amanhã?"

Ariana abriu muito os olhos e observou-o com intensidade.

"Amanhã?"

"Sim."

"Não, Tomás, não pode ser amanhã."

"Hmm... então quando? Ainda esta semana?"

A iraniana abanou a cabeça, uma súbita expressão melancólica a dançar-lhe nos olhos, um pouco triste, quase já de saudade.

"Daqui a dez minutos."

Despediram-se com um abraço terno, estreitando-se um tudo-nada longamente, observados pelos olhos perscrutadores e vigilantes de Hamideh e Sabbar. Tomás daria tudo por um momento de privacidade, um instante apenas; queria fechar-se num canto com Ariana e poder dizer adeus sem inibições. Mas o historiador sabia que aquilo era o Irã e tais desejos, naquelas circunstâncias, não passavam de perigosas fantasias. E a verdade é que, tudo considerado, a última coisa que desejava era embaraçar Ariana.

Colou-lhe dois beijos suaves ao rosto e fez um esforço para se apartar.

"Vai-me escrever?", perguntou ela muito baixo, mordendo o lábio inferior.

"Sim."

"Jura?"

"Juro."

"Jura por Allah”

"Juro por si."

"Por mim?"

"Sim. Você é mais do que Allah. Muito mais."

Esforçou-se por nem olhar para trás quando voltou as costas para sair. Seguiu Sabbar para o átrio do elevador e sentiu a porta do apartamento fechar-se atrás de si, o claque da fechadura soou-lhe ao claque de uma tesoura que para sempre corta uma ligação.

Permaneceu em silêncio, meditativo, quase deprimido, e foi calado que entrou no ascensor; dobrado nas mãos trazia distraidamente o tecido ríspido de um chador negro que Hamideh lhe entregara, momentos antes, para a viagem.

"Ariana ghashang", disse o iraniano quando o elevador deu um solavanco e começou a descer.

"Hã?"

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"Ariana ghashang", repetiu. Deu um beijo no ar. "Ghashang."

"Sim", sorriu ele com melancolia. "Ela é bonita, é."

Sabbar apontou para o chador que o português trazia dobrado nas mãos e fez-lhe sinal de que o deveria vestir agora. Ainda com o ascensor em movimento, Tomás mergulhou a cabeça no tecido e retomou o seu disfarce anterior.

XX

O Mercedes cruzou a cidade com enervante vagar, retido pela lenta e densa corrente do trânsito caótico de Teerã. Mergulharam no emaranhado tricotado de ruidosas artérias e atravessaram de novo a grande Praça Imam Khomeini, perdendo-se depois para além dela rumo ao labirinto de ruas que se estendia para leste. Tomás tudo perscrutava com nervosa ansiedade, os olhos saltitando para aqui e para ali, a atenção focando-se nos detalhes mais improváveis; em cada rosto e em cada carro pressentia uma ameaça, em cada voz e em cada buzinadela escutava um alarme, a cada paragem e a cada movimento adivinhava um assalto.

Parecia-lhe que o perigo espreitava de todos os cantos e várias vezes teve de repetir a si próprio que estava tudo bem, que era a sua imaginação que o fazia ver o que não existia. A verdade é que haviam traçado um plano e tudo corria como previsto. Antes de partirem tinham concluído que fazer a viagem de automóvel até Bandar-e Torkaman era bastante arriscado, uma vez que existia a possibilidade de as autoridades erguerem barreiras na estrada para localizar o fugitivo, pelo que optaram pelos transportes públicos. Tomás assumiu o papel de uma beata de chador que fizera voto de silêncio e ficou combinado que todos os contactos com terceiros seriam conduzidos através de Sabbar, o seu guia.

Em consonância com o plano previamente delineado, estacionaram o carro meia hora mais tarde, depois de terem vencido o confuso trânsito do fim do dia e atingido o seu destino imediato.

"Terminal e-shargh", anunciou Sabbar.

Era a estação de autocarros de leste. Tomás contemplou-a do outro lado da rua e não pôde deixar de a achar pequena, demasiado pequena para um terminal que, afinal de contas, servia toda a província de Khorasan e a região do mar Cáspio.

Atravessaram a rua, entraram no perímetro da estação e, cruzando um espaço apinhado de gente com malas e autocarros a roncar e gasóleo queimado e conversas animadas, dirigiram-se à bilheteira. O iraniano comprou dois bilhetes e fez a Tomás sinal para se despachar, o seu autocarro estava prestes a sair. Quando chegaram ao local da partida depararam com um veículo velho e sujo, pejado de camponeses, pescadores de pele morena e mulheres de chador.

Entraram no autocarro e o europeu teve dificuldade em reprimir um esgar enojado, embora o pudesse fazer à vontade, afinal de contas ninguém lhe podia ver o rosto. Havia pedaços de comida nos bancos e encontravam-se algumas jaulas de aves por entre os passageiros, aqui umas galinhas, ali uns patos, acolá uns pintos. No ar flutuava o aroma quente dos excrementos e alimentos de pássaros, ao qual se misturava um certo cheiro ácido de urina e transpiração humana e o odor nauseabundo a gasóleo queimado que pairava em toda a estação.

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O autocarro partiu cinco minutos depois, eram seis da tarde em ponto. A camioneta meteu pela estrada aos solavancos, o tubo de escape a libertar uma grossa nuvem de fuligem negra, o motor roncando em fúria. O trânsito de Teerão permanecia o mesmo inferno de sempre, com manobras loucas, buzinadelas constantes e travagens bruscas. O autocarro levou quase duas horas a atravessar o que restava da cidade, mas, por fim, depois de muito parar e arrancar, a zona urbana ficou para trás e o fumarento veículo desfilou pelo tranquilo sopé das montanhas.

Foi uma viagem sem história, feita de noite em zona montanhosa, o percurso cheio de curvas e subidas e descidas, os faróis a iluminarem fugazmente o manto de neve acumulado nas bermas da estrada. Para vencer o enjoo das curvas e do aroma a gasóleo e a opressão claustrofóbica imposta pelo chador, Tomás abriu a janela e passou grande parte da viagem a respirar o ar frio e rarefeito das Alborz, o que deixou contrariados alguns companheiros de viagem, mais adeptos dos odores quentes e fortes do que das correntes geladas e puras.

Chegaram a Sari pelas onze da noite e foram alojar-se num pequeno hotel do centro, chamado Mosaferkhuneh. Sabbar pediu para que lhes fosse servida uma refeição nos quartos e recolheram-se ambos para passarem a noite. Sentado na cama a digerir um kebab, já sem chador, Tomás ficou a apreciar pela janela a povoação adormecida e, em particular, a curiosa torre branca com um relógio erguida no meio da Praça Sahat, mesmo ali em frente.

Apanharam pela manhã um autocarro rumo a Gorgan e, pela primeira vez, Tomás pôde apreciar a paisagem daquela região costeira à luz matinal do sol. Era totalmente diferente do que conhecera na zona de Teerão. Onde na capital se rasgavam montanhas escarpadas, se erguiam picos nevados e se prolongava a terra árida, aqui espalhava-se uma floresta luxuriante, densa, quase tropical, era uma verdadeira selva comprimida entre as montanhas pujantes e o lençol sereno do mar.

Atingiram Gorgan três horas depois e permaneceram na estação de autocarros local mais algum tempo, à espera da nova ligação. Tomás sentia o corpo moído de cansaço e tinha a paciência esticada até ao limite por aquele incomodativo chador.