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Para além do mais, o facto de Sabbar não falar inglês revelava-se um problema, havia uma barreira de comunicação entre os dois e o historiador não teve outro remédio senão passar todo o tempo em silêncio; não é que isso fosse em si um inconveniente, bem vistas as coisas era até uma vantagem, considerando que o mutismo fazia parte integrante do disfarce, mas o fato é que a inexistência de conversa lhe retirava um necessário escape para a tensão que ia acumulando.

Fazia calor na Praça Enqelab, onde se situava o terminal de Gorgan. O dia revelou-se quente e o

uso do abafado cbador agravava consideravelmente as coisas. Sem perceber como era possível viver dentro daqueles pesados trajos, Tomás teve de recorrer a todas as suas forças para se controlar; sentia por vezes uma vontade quase irresistível de despir o tecido infernal, de se livrar da vestimenta obscurantista que só o prendia e atrapalhava, de libertar o corpo e deixar-se inebriar por um banho de ar fresco e límpido. Mas resistiu aos sucessivos impulsos que o assaltaram e manteve o disfarce.

Apanharam transporte para o destino final ao princípio da tarde, o velho autocarro saltitando pelos buracos dos caminhos de terra abertos por entre a abundante vegetação da costa. Deambularam por trilhos e atalhos, o veículo sacudido por intermináveis solavancos, até que, ao fim de mais duas longas horas, vislumbraram os primeiros edifícios no termo daquele percurso, eram pequenas casas recortadas pelo azul profundo do mar Cáspio.

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Bandar-e Torkaman.

A povoação era formada por casas baixas, quase monótonas, uma coisa sem graça de tão sensaborona; a insipidez da urbe seria, porém, compensada pelo aspecto pitoresco da população turcomana. Logo que desceram da camioneta, os dois forasteiros admiraram os homens e mulheres que por ali deambulavam em trajos típicos otomanos e ar enfadonhamente ocioso. O mercado estava aberto, mas os produtos eram pobres; o comércio limitava-se a algum peixe, umas roupas turcas e colecções de botas com aspecto tosco.

Sabbar questionou uma mulher que tricotava ao sol, sentada no degrau da entrada de casa. A

mulher ajeitou o lenço na cabeça e apontou o dedo rude e sujo para um ponto algures à esquerda.

"Eskele."

Caminharam ao longo de uma velha linha de caminhos-de-ferro, a madeira já apodrecida entre os carris, em direcção a uns depósitos de combustível. Sabbar seguia à frente, Tomás arrastava-se atrás, ofegante dentro do cada vez mais insuportável cbador. Passaram pelos depósitos, que exalavam o aroma forte de óleo e gasolina, e imobilizaram-se quando viram umas rudimentares estacas de madeira pregadas junto ao mar.

O porto de Bandar-e Torkaman.

Três barcos de pesca balouçavam suavemente nas águas tranquilas do Cáspio, o golfo de Gorgan estendendo-se atrás de si como uma imensa pintura impressionista.

Pairava junto à praia um intenso odor a sal e maresia e pela superfície mansa do mar ecoava o grasnar melancólico das gaivotas. Era aquele perfume e aquele som que faziam daquele sítio um lugar familiar, Tomás nunca ali estivera mas era como se sempre ali tivesse estado, onde o mar cheirasse assim e onde as gaivotas cantassem desse modo era onde encontraria sempre a sua casa.

O historiador aproximou-se da água, amarrado ao pesado cbador, e, por entre o asfixiante rendilhado que lhe tapava a cara, tentou perceber o que cada embarcação tinha escrito no casco. O primeiro barco apresentava uns caracteres em árabe que o desesperaram; seria o nome que procurava, mas redigido em alfabeto árabe? Sabbar juntou-se a ele e leu o nome cravado na madeira.

"Anahita."

Não era este.

Tomás deu mais uma centena de passos e aproximou-se do segundo barco de pesca, um pequeno navio vermelho e branco, ancorado muito perto, com redes estendidas ao sol e gaivotas a pairar por cima. Procurou-lhe a escrita em caracteres árabes, mas desta vez não precisou da ajuda de Sabbar, pois no casco encontravam-se antes registados os familiares caracteres romanos.

Baku.

Era este.

Sem poder suportar mais o chador, Tomás despiu-o com impaciência, livrou-se daquele incômodo fardo e atirou-o para o chão. Sentiu a brisa marítima acariciar-lhe o rosto transpirado e despentear-lhe o cabelo revolto; cerrou os olhos e voltou a face para o céu, como se esperasse que a aragem lhe trouxesse um beijo. Aliviado, as 147

narinas inalando o aroma salgado da redenção, os pulmões enchendo-se com a maresia fresca que flutuava no ar, os pés enlaçados na baba branca depositada pela espuma da água, encarou aquele sopro do vento como se fosse o hálito puro de Deus, o murmúrio suave da natureza a acolhê-lo, um gesto mimado de doce ternura de mãe, sabia que era a liberdade que por fim o abraçava.

Passado aquele instante de êxtase, abriu os olhos, fixou o pesqueiro, formou uma concha com as palmas das mãos e colocou-as à frente da boca, como se fossem altifalantes.

"Ahooooy!", chamou.

A sua voz ecoou sobre o espelho plácido das águas e espantou as gaivotas.

Muitas ergueram-se em sincronia, como uma nuvem escura e baixa, e desenharam um vigoroso saracoteado pelo céu, numa elegante coreografia; esvoaçavam num frenesim e responderam à voz humana com um grasnar nervoso, quase histérico, uma ponta de melancolia a colorir-lhes o timbre.

"Ahooooy!", insistiu.

Uma cabeça emergiu do convés do Baku.

"Chikar mikorim?.", perguntou o pescador lá ao longe.

Encorajado, Tomás encheu os pulmões de ar.

"Mohammed?"

O pescador hesitou.

"Ye lahze shabr konin", disse por fim, fazendo sinal a Tomás para que esperasse.

A cabeça do homem do barco desapareceu do convés. Tomás ficou ali especado a observar o barco de pesca, em silêncio, expectante, quase rezando para que as coisas corressem como previsto. O pesqueiro ondulava ao ritmo suave do mar, como um balanço, uma frágil casca embalada numa dança ronceira, um lento bailado pautado pelo grasnar melodioso e nostálgico das gaivotas e pelo marulhar tranquilo das águas que lambiam a areia no seu vaivém incansável.

O pescador reapareceu meio minuto depois, acompanhado de uma segunda cabeça. Desta vez foi o segundo homem que falou e fê-lo em inglês.

"Eu sou o Mohammed. Posso ajudá-lo?"

Tomás quase deu um pulo de alegria.

"Sim, pode", exclamou, a rir de alívio. "O senhor planeja ir a Meca?"

Mesmo à distância, o historiador viu Mohammed sorrir.

"Inch'Allah!”

XXI

A figura minúscula de Sabbar foi-se perdendo à distância, agora um mero ponto a afastar-se na praia, desaparecendo à medida que o barco de pesca cortava as águas escuras do Cáspio e rumava para o mar alto. As gaivotas adejavam baixo, escoltando a embarcação na vã esperança de lhes ser atirado mais algum peixe, mas os marinheiros não se compadeceram com as súplicas implícitas nos insistentes 148

grasnares e permaneceram concentrados na navegação, as horas de ócio na brincadeira com as aves tinham definitivamente terminado.

Um vulto acercou-se de Tomás. O português pressentiu aquela presença e virou a cabeça para acolher o recém-chegado. Era Mohammed. O capitão do pesqueiro permaneceu um instante calado, também ele a contemplar a sombra distante de Sabbar a esfumar-se no areal. Mohammed era um azeri de barba grisalha, embora o seu aspecto bem tratado, com pele sedosa e unhas brancas impecavelmente aparadas, traísse o fato de que aquele não era nenhum pescador, mas antes um vivido homem da cidade.