"Acha que não é possível uma intervenção do sobrenatural?"
"O sobrenatural é aquilo que nós invocamos quando desconhecemos uma coisa natural. Antigamente, uma pessoa adoecia e dizia-se: está possuído pelos maus espíritos. Hoje, a pessoa adoece e nós dizemos: está possuído por bactérias ou por vírus ou por outra coisa qualquer. A doença é a mesma, o nosso conhecimento sobre as suas causas é que mudou, percebes? Quando desconhecíamos as causas, invocávamos o sobrenatural. Agora que as conhecemos, invocamos o natural. O
sobrenatural não é mais do que uma fantasia alimentada em torno do nosso desconhecimento sobre o natural."
"Então não há sobrenatural."
"Não, há apenas o natural que nós desconhecemos. O ateu que há em mim aceita que não foi Deus que criou o homem, mas o homem que criou Deus." Fez um gesto que abarcou todo o quarto. "Tudo o que nos rodeia tem uma explicação. Acredito que as coisas se regem por leis universais, absolutas e eternas, onipotentes, onipresentes e oniscientes."
"Um pouco como Deus..."
O pai riu-se baixinho.
"Sim, se quiseres. É verdade que as leis do universo têm os atributos que nós geralmente relacionamos com Deus, mas isso acontece por razões naturais, não por razões sobrenaturais."
"Como assim?"
"As leis do universo têm esses atributos porque é essa a sua natureza. Por exemplo, elas são absolutas porque não dependem de nada, afectam os estados físicos mas não são afetadas por eles. São eternas porque não mudam com o tempo, eram as mesmas no passado e continuarão certamente a ser as mesmas no futuro. São omnipotentes porque nada lhes escapa, exercem a sua força em tudo o que existe. São onipresentes porque se encontram em qualquer parte do universo, não há umas leis que se aplicam aqui e outras diferentes que se aplicam ali. E são oniscientes porque exercem automaticamente a sua força, não precisam que os sistemas as informem da sua existência."
"E de onde é que vêm essas leis?"
O matemático esboçou um sorriso de garoto.
"Agora é que me apanhaste."
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"Então?"
"A origem das leis do universo constitui um grande mistério. É verdade que essas leis têm todos os atributos que normalmente nós conferimos a Deus." Tossiu. "Mas, atenção, o fato de não conhecermos a sua origem não implica necessariamente que elas provenham do sobrenatural." Ergueu um dedo. "Lembra-te que usamos o sobrenatural para explicar o que ainda não sabemos, mas que tem uma explicação natural. Se usarmos o sobrenatural de cada vez que não sabemos algo, estamos a recorrer ao Deus-das-lacunas. Daqui a algum tempo descobrir-se-á a verdadeira causa e nós fazemos figura de parvos. A Igreja, por exemplo, fartou-se de usar o Deus-das-lacunas para explicar coisas que antigamente não tinham explicação, e depois sofreu o enorme embaraço de ter de se desdizer quando foram feitas descobertas que desmentiam a explicação divina. Copérnico, Galileu, Newton e Darwin são os casos mais conhecidos." Tossiu. "De qualquer modo, Tomás, a questão da origem das leis do universo constitui algo que não conseguimos explicar. Aliás, existe um determinado número de propriedades do universo que me impedem de afirmar liminarmente que Deus não existe. A questão da origem das leis fundamentais é uma delas. A sua existência serve para nos lembrar que se esconde um grande mistério por detrás do universo."
Tomás passou os dedos pelo queixo, pensativo. Depois fez um gesto na direção do bolso do casaco.
"Olhe, pai", disse, dando uma palmadinha no bolso. "Eu tenho aqui duas frases enigmáticas que gostaria que me explicasse, se pudesse."
"Diz lá."
Tomás meteu a mão dentro do bolso e retirou uma folha, que desdobrou. Passou os olhos pelo texto e voltou-se para o pai.
"Posso?"
"Força."
"Sutil é o Senhor, mas malicioso Ele não é", leu. "A Natureza esconde o seu segredo devido a sua essência majestosa, nunca por ardil."
Manuel Noronha, a cabeça enterrada na vasta almofada, sorriu.
"Quem disse isso?"
"Einstein."
O matemático balançou afirmativamente a cabeça.
"É bem-visto."
"Mas o que significa isto?"
O pai bocejou mais uma vez.
"Estou cansado", disse simplesmente. "Amanhã eu explico-te."
XXIII
Quando Tomás acordou, ouviu ressoar pela casa o tilintar metálico de talheres a tocarem em louça e de pratos a embaterem noutros pratos. Levantou-se da cama, foi ao quarto de banho, despachou-se em cinco minutos e convergiu de roupão para a 166
cozinha; deparou com a mãe sentada na mesinha da copa, com um copo de leite quente na mão e duas torradas num prato.
"Bom dia, Tomás", cumprimentou a mãe, acenando com uma torrada. "És servido?"
"Uh... sim. Tem sumo de laranja?"
A senhora levantou-se do seu lugar e espreitou o frigorífico. Pegou num invólucro cor de laranja e analisou a data impressa junto à abertura.
"Olha, filho, acho que está fora do prazo. Tenho de ir comprar mais."
"E fruta? Não tem fruta?"
Graça apontou para o cesto colorido assente no balcão, ao lado do frigorífico.
"Tens bananas, maçãs e tangerinas." Voltou a espreitar o frigorífico. "E temos aqui lícheas em calda. O que preferes?"
Tomás colocou duas fatias de pão de forma na torradeira e pegou numa tangerina, que logo começou a descascar.
"Eu fico com a tangerina."
"Fazes muito bem. São docinhas, vêm do Algarve."
Com a tangerina já despida, Tomás sentou-se numa cadeira da copa e trincou um bago sumarento.
"O pai?"
"Ainda está a dormir. Tomou ontem uns comprimidos para não ser afetado pela tosse durante a noite, mas o problema é que acaba sempre por dormir mais do que devia."
"Pois, ele adormeceu cedo, não foi? A esta hora já devia estar em pé..."
"Ah, não te preocupes, ele já se levanta." A mãe tirou o avental e olhou em redor, como se estivesse a tentar organizar-se. "Olha, vamos fazer assim. Eu vou deixar tudo preparado para o pequeno-almoço dele, está bem? Tenho agora de ir ao supermercado buscar as coisas para o almoço, mas como tu ficas por aqui não há problema, não é verdade?"
"Sim, claro."
"Ele vai estar com uma fome de lobo. Ontem só comeu uma sopinha pelo jantar e, se bem o conheço, vai querer agora compensar."
"Faz ele bem."
"Portanto, quando o teu pai acordar, não te esqueças, é só aquecer-lhe o leite."
"Ele bebe o leite com quê?"
Graça pegou numa caixa dourada, com uma enorme ave pintada na cobertura.
"Flocos de aveia. Aqueces-lhe o leite e depois juntas o leite aos flocos de aveia num prato de sopa, está bem?"
Tomás pegou na caixa e pousou-a sobre a mesa.
"Vá lá descansada."
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O pai levou uma boa meia hora a aparecer na cozinha. Tal como a mulher previra, vinha cheio de fome e, conforme previamente combinado, Tomás preparou-lhe os flocos de aveia em leite quente. Quando o prato ficou pronto, sentaram-se os dois na mesa da copa a saborear o pequeno-almoço.
"Então mostra lá outra vez aquelas duas frases do Einstein", pediu Manuel, enquanto levava uma colher à boca.
Tomás foi ao quarto buscar a folha com a frase rabiscada e voltou para a cozinha.
"É isto", disse, sentando-se no seu lugar com a folha aberta na mão. "Sutil é o Senhor, mas malicioso Ele não é", leu de novo. "A Natureza esconde o seu segredo devido a sua essência majestosa, nunca por ardil." Olhou para o pai. "Na boca de um cientista, na sua opinião o que quer esta frase dizer?"