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"Claro, isso não é possível."

"Mas a segunda ordem de factores está relacionada com o problema do infinito.

Por exemplo, vamos imaginar que eu teria de medir a temperatura global num dado momento para poder fazer extrapolações. Suponhamos que, aqui em Coimbra, eu colocava o termómetro e media ao meio-dia... uh... sei lá, dá-me um valor."

"Vinte graus?"

O pai voltou a tirar a caneta do casaco e rabiscou uns algarismos no mesmo guardanapo de papel onde já escrevinhara o valor que levara Lorenz a descobrir os sistemas caóticos.

20º

"Muito bem, 20 graus", disse o matemático. "Mas a verdade é que esta medição está incompleta, não está? Eu só medi as unidades. Ora, nós sabemos que as pequenas alterações nas condições iniciais conduzem a grandes alterações nas 175

condições finais. Se assim é, saber qual a medição decimal, centesimal e milesimal é fundamental, não achas?"

"Bem, então acrescente lá."

Manuel juntou três algarismos.

20,793º

"Mas... e os valores seguintes? Não poderão também ser importantes? A Teoria do Caos diz que sim. Portanto, temos de pôr os valores seguintes, por muito minúsculos que sejam, uma vez que qualquer pequena alteração pode produzir efeitos gigantescos."

"Hmm."

O matemático acrescentou mais algarismos.

20,793679274027934288722º

"Mas mesmo isto não chega", afirmou. "É que o algarismo seguinte a todos estes também pode ser crucial." Sorriu. "O que eu quero dizer é que a medição teria de levar um número infinito de algarismos. Ora, isso não é possível, pois não? Portanto, por mais algarismos que ponhamos, nunca poderemos saber com exatidão a temperatura num determinado lugar e hora, uma vez que teríamos de fazer uma conta que envolvesse dados infinitesimais."

"Ah, entendi."

"Mas o problema é ainda mais complexo do que isto." Bateu na mesa. "É que a temperatura que se verifica aqui nesta mesa pode ser ligeiramente diferente da temperatura existente ali, a apenas um metro de distância." Apontou para o lado.

"Logo, teríamos de medir todos os espaços de Coimbra. Mas isso não é possível, pois não? Tal como no Paradoxo de Zenão, é fácil constatar que cada metro é infinitamente divisível. Eu teria de medir a temperatura em todos os espaços existentes para poder saber quais as condições iniciais. Mas como a distância entre cada espaço, por mais pequena que seja, é sempre divisível pela metade, eu nunca conseguiria medir todo o espaço. E o mesmo se aplica no tempo. A diferença entre um segundo e outro é infinitamente divisível, não é? Ora, entre um instante e o outro pode haver sutis variações de temperatura que têm de ser medidas. Mas como a divisão entre o tempo é igualmente infinita, segundo o princípio enunciado pelo Paradoxo de Zenão, eu nunca conseguirei obter essa medição. Lembra-te, o raciocínio por detrás do Paradoxo de Zenão mostra-nos que existe tanto espaço num metro como no universo inteiro, existe tanto tempo num segundo como em toda a eternidade, e esta é uma propriedade misteriosa do universo."

"Estou a ver..."

Manuel pegou na chávena e engoliu todo o café que restava. Respirou fundo, distendeu-se na cadeira e fechou os olhos, gozando o calor prazenteiro irradiado pelo sol.

"Lembras-te de, no outro dia, eu te ter falado nos teoremas da Incompletude, de Gödel?"

"Sim."

176

"Vamos lá a ver se memorizaste a coisa", disse. "Em que consistem esses teoremas?"

Tomás sacudiu a cabeça, com enfado.

"Eh pá! Sei lá..."

O pai abriu um olho e fitou Tomás.

"Não te lembras?"

"Eu não!"

"Então não te lembras de eu dizer que os teoremas da Incompletude mostram que um sistema matemático não consegue provar todas as suas afirmações?"

"Ah, sim."

"Essa demonstração foi de grande importância, percebes?"

"Mas porquê? O que tem isso assim de tão extraordinário?"

"É muito simples", disse Manuel. "Os teoremas da Incompletude desvendaram uma nova característica misteriosa do universo. Através desses dois teoremas, o que o universo nos diz é o seguinte: há certas coisas que vocês, seres humanos, sabem que são verdadeiras, mas jamais poderão prová-lo devido à forma majestosa como eu, o universo, ocultei o último resto da verdade.

Vocês poderão conhecer grande parte da verdade, mas as coisas estão concebidas de tal modo que jamais conseguirão apreendê-la na íntegra. Entendes agora?"

"Sim."

O matemático abriu as mãos, no seu gesto característico sempre que acabava de provar algo.

"Voilà", exclamou. "O Princípio da Incerteza, os sistemas caóticos e os teoremas da Incompletude têm um significado profundo, ao revelarem-nos subtilezas incríveis do funcionamento do universo." Abarcou o céu com um gesto. "Todo o cosmos está assente na

matemática. As leis fundamentais do universo expressam-se em equações e fórmulas matemáticas, as leis da física são algoritmos para o processamento de informação e o segredo do universo encontra-se codificado em linguagem matemática.

Tudo está ligado a tudo, até o que não parece ter ligação. Mas mesmo a linguagem matemática não consegue descodificar totalmente esse código. É essa a propriedade mais enigmática do universo: a forma como ele oculta a verdade final. Está tudo determinado, mas tudo é indeterminável. A matemática é a linguagem do universo, mas não temos maneira de o provar para além de qualquer dúvida. Quando vamos ao fundo das coisas, encontramos sempre um estranho véu que oculta as derradeiras facetas do enigma. O criador esconde aí a sua assinatura. As coisas estão concebidas com tal sutileza que não é possível desvendar por completo o seu segredo mais profundo."

"Hmm."

"Haverá sempre mistério no fundo do universo."

XXV

177

O anfiteatro formigava de estudantes. Procuravam-se lugares, assentavam-se livros, trocavam-se olhares. Todo aquele espaço no rés-do-chão do Departamento de Física regurgitava de nervosa atividade, bem vistas as coisas a aula prometia ser especial e a novidade atraíra alunos de toda a Universidade de Coimbra. Mas o que enchia de vida a grande sala era sobretudo aquele burburinho constante, uma espécie de contínuo marulhar das ondas sobre a praia deserta; a vozearia era entrecortada pelo crocitar ocasional de tosses, como se o rumor do mar fosse pontuado pelo grasnar melancólico das gaivotas.

Misturando-se por entre aquele enxame de estudantes, Tomás Noronha procurou a parte mais recuada do anfiteatro e instalou-se num dos lugares de trás. Havia muito tempo que não via uma sala de aulas daquela perspectiva, encarando os alunos pela nuca, não pela face; mas queria ser discreto e o fundo do anfiteatro revelou-se o lugar mais circunspecto que encontrou. Desconfortável com a diferença de idades em relação aos alunos que o rodeavam, afinal de contas os estudantes andavam na casa dos vinte e Tomás já ia nos quarenta e dois, chegou a interrogar-se se fizera bem em ali ir; mas logo concluiu que sim, aquela iria ser a primeira aula da cadeira do professor Siza que não era dada pelo próprio catedrático e, tal como os alunos de outros departamentos que também para ali convergiram, não queria perder o acontecimento.

Desde que o professor Siza desaparecera que a universidade suspendera as aulas de Astrofísica, mas a suspensão não podia ser eterna, sobretudo considerando a importância daquela cadeira no quadro do curso de Física; perante a demora em resolver-se a questão do paradeiro de Augusto Siza, logo se decidiu que, até nova ordem, seria o principal auxiliar do catedrático, o professor Luís Rocha, a assegurar a cadeira.