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Tomás queria conhecer o professor Rocha. O pai dissera-lhe que o colaborador de Siza tinha ficado muito nervoso com o desaparecimento do seu mentor, o que, tudo considerado, parecia compreensível. Mas era conhecido que este pessoal das matemáticas e das físicas exibia por vezes comportamentos mundanos que se poderiam classificar de extravagantes, para utilizar uma expressão simpática, e Luís Rocha, segundo Tomás ouvira dizer, não constituía exceção. O pai contara-lhe que o auxiliar se tornara paranóico desde o desaparecimento do professor Siza; mantivera-se dias seguidos encerrado em casa e tiveram de ser os colegas a ir às compras para o abastecerem de alimentos e outros bens essenciais.

O comportamento paranóico encontrava-se, pelos vistos, já controlado, ao ponto de Luís Rocha aceitar leccionar a cadeira do seu mentor. Havia algo de catártico nisso, é certo; ao dar aquela aula, o professor auxiliar assumia-se como o herdeiro natural do mestre e, ao mesmo tempo, ajudava a exorcizar os demónios libertados por aquele desaparecimento tão súbito e inexplicado.

Para Tomás, a aula serviria sobretudo de introdução ao homem que queria conhecer. O historiador considerava importante falar com o colaborador do professor Siza; não é que Luís Rocha soubesse muita coisa sobre o desaparecimento do mestre, mas conheceria certamente pormenores relativos ao seu pensamento, às suas pesquisas, aos seus projetos, e esses detalhes poderiam fornecer pistas valiosas.

Tomás balançou afirmativamente a cabeça. Fizera bem em vir assistir àquela aula inaugural.

Consultou o relógio. Já passavam catorze minutos das onze da manhã, a hora a que a aula supostamente começava. Pelos vistos estava ali em vigor o célebre "quarto de hora acadêmico", como era conhecido o tradicional atraso que se praticava no início das aulas em Coimbra. Contemplou o estrado deserto, onde se encontrava o quadro 178

branco limpo e a secretária vazia do professor, e voltou a balançar suavemente a cabeça para a frente e para trás. Sim, repetiu para si mesmo. Fizera bem em vir.

Convinha é que Luís Rocha também aparecesse.

Logo que o professor entrou, um silêncio absoluto abateu-se sobre o anfiteatro.

Apenas o som dos seus passos tímidos ecoou entre aquelas paredes. O silêncio durou apenas alguns breves segundos e logo o burburinho recomeçou, mas agora sussurrado; de repente os alunos pareciam velhinhas encostadas à janela a comentar a chegada de uma nova vizinha, medindo-lhe o aspecto, lendo-lhe o rosto, procurando fraquezas para explorar.

Luís Rocha era um homem alto com aspecto de já ter sido magro, mas a barriga fora vencida talvez pela cerveja, talvez por grandes almoçaradas nos bons restaurantes da cidade. Escasseava-lhe cabelo no topo da testa e o que restava era prematuramente grisalho. Aparentava um ar manso, pachorrento até, mas Tomás suspeitava que isso era apenas o ar, por baixo de tal calmaria agitava-se decerto um temperamento volátil.

O professor manteve-se alguns instantes sentado na sua secretária, consultando as anotações, e depois levantou-se e encarou a turma. Olhou para um lado e para o outro, contraindo a cara num contagioso tique nervoso.

"Bom dia", saudou.

A turma respondeu com um "bom dia" desafinado.

"Como sabem... uh... estou aqui em substituição do professor Siza, que... que...

enfim, que não pode estar presente", gaguejou. "Como esta é a primeira aula de Astrofísica neste semestre, pensei que, se calhar, era melhor fazer um apanhado geral sobre o essencial de dois pontos cruciais da matéria... uh... o... o Alfa e o Ômega. As equações e os cálculos ficarão para mais tarde. Parece-vos bem?"

Os estudantes responderam com um silêncio expectante. Apenas duas raparigas da fila da frente, preocupadas em não deixar o professor sem resposta, acenaram afirmativamente com a cabeça, encorajando-o a prosseguir.

"Bem... quem é que me sabe dizer o que são os pontos Alfa e Ômega?"

Luís Rocha era, além de inexperiente a dar aulas, teimoso, constatou Tomás. A turma mostrava-se passiva, talvez por respeito para com a figura ausente de Augusto Siza, talvez porque pressentia a inexperiência de Luís Rocha e queria testá-la até ao limite, mas a verdade é que o professor insistia em interpelar os alunos. Embora fosse a atitude pedagógica mais correcta, tal postura constituía sem dúvida, naquele contexto, um risco desnecessário.

Fosse como fosse, apenas o silêncio respondeu ao docente.

"Então?"

Mais silêncio.

A aula começava mal e tornava-se um tudo-nada confrangedora, mas Luís Rocha não baixou os braços e apontou para um aluno de barbas.

"O que é o ponto Alfa?"

O estudante estremeceu; até aí apreciara tranquilamente o espetáculo e não estava à espera de ser interpelado.

"Bem... uh... acho que... acho que é a primeira letra do alfabeto grego", exclamou, enchendo o peito de satisfação e sorrindo com a sua tirada.

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"Como é que você se chama?"

"Nelson Carneiro."

"Nelson, esta não é uma cadeira de Línguas nem de História. Depois dessa resposta, eu diria que você está à beira de ser chumbado."

Nelson corou, mas o professor ignorou o rubor e virou-se para toda a classe.

"Ouçam bem", disse. "Comigo é premiado o aluno que colaborar na aula e se mostrar interventivo. Eu quero cabeças pensantes, mentes activas e inquisitivas, não quero esponjas passivas, entenderam?" Apontou de imediato para um aluno do outro lado, rapaz bem nutrido. "Em Astrofísica, o que é o ponto Alfa?"

"É o início do universo, professor", devolveu o gordinho muito depressa, escaldado com o que se passara momentos antes com Nelson.

"E o ponto Ômega?"

"É o fim do universo, professor."

Luís Rocha esfregou as mãos e Tomás, olhando-o do fundo do anfiteatro, não pôde deixar de pensar que se enganara; afinal, o professor não era inexperiente. Com umas frases apenas, ao ameaçar um aluno de reprovação e encorajando os outros a serem mais interventivos, pusera toda a turma em sentido.

"O Alfa e o Ômega, o princípio e o fim, o nascimento e a morte do universo", enunciou. "Eis os temas da nossa conversa de hoje." Deu dois passos para o lado.

"Pergunto-vos eu: por que razão o universo tem de ter um princípio e um fim? Qual o problema de o universo ser eterno? Poderá ele ser eterno?"

A turma manteve-se em silêncio, ainda a digerir os novos métodos.

"Você aí, qual a resposta?"

Apontou para uma aluna de óculos, que logo ficou muito corada ao ver-se interpelada.

"Bem, professor... uh... eu não... não sei."

"Não sabe você, nem sabe ninguém", rematou o professor. "Mas essa é uma hipótese a considerar, não é? Um universo de duração infinita, sem princípio nem fim, um universo que sempre existiu e sempre existirá. Agora pergunto-vos, como é que vocês acham que a Igreja reage a este conceito?"

Os alunos fizeram um ar incrédulo, alguns pareciam mesmo duvidar que tinham escutado o que o professor perguntara.

"A Igreja?", admirou-se um deles. "O que tem a Igreja a ver com isto, professor?"

"Tudo e nada", retorquiu Luís Rocha. "A questão do princípio e do fim do universo não é uma questão exclusivamente científica, é um problema também teológico. Sendo uma questão essencial, ela bordeja já as fronteiras da física, ao ponto de quase entrar, ou entrar mesmo, na metafísica. Houve ou não houve Criação?" Deixou a pergunta pairar um instante no anfiteatro. "Baseada no que está escrito na Bíblia, a Igreja sempre preconizou um princípio e um fim, um Gênesis e um Apocalipse, um Alfa e um Omega. Mas a ciência começou, a certa altura, a aparecer com uma resposta diferente. Na sequência das descobertas de Copérnico, Galileu e Newton, os cientistas passaram a achar que a hipótese de um universo eterno era a mais provável. É que, por um lado, o problema da Criação remete para o problema do Criador, pelo que, eliminando-se a Criação, elimina-se a necessidade de um criador. Por outro, a observação do universo parece indiciar um mecanismo constante e estável, mais consonante com a ideia de que esse mecanismo sempre existiu e sempre existirá.