Выбрать главу

"Porque o desaparecimento do professor Siza parece estar ligado a interesses internacionais."

"Ah, sim? Que interesses são esses?"

"Receio não ter liberdade para revelar o que sei sobre o assunto. Como deve compreender, isso poderia comprometer as investigações."

Luís Rocha coçou o queixo, pensativo.

"Mas você disse-me que é um professor de História, não disse?"

"Sim, sou."

"Então por que razão a Interpol solicitou os seus serviços?"

"Eles vieram falar comigo porque sou criptanalista e foram descobertas algumas cifras que poderão levar ao professor Siza."

"Ah, é?" Luís mostrava-se profundamente interessado nestas revelações. "Que cifras são essas?"

"Não lhe posso dizer", retorquiu Tomás. O historiador não se sentia confortável por se ver a mentir de forma tão descarada e decidiu desviar a conversa e ir diretamente ao assunto que lhe interessava. "Ouça, pode ajudar-me ou não?"

"Claro que posso", exclamou o físico. "O que quer saber?"

"Quero saber quais as investigações que o professor Siza estava a fazer."

Luís Rocha endireitou-se, contemplou o casario para além da janela do gabinete e respirou fundo. Sentou-se diante da sua secretária, colocou os apontamentos numa pasta e guardou-a numa gaveta. Depois encostou-se para trás e fitou Tomás.

"Você não está com fome?"

190

O belo restaurante do Hotel Astória encontrava-se quase deserto, talvez por ser ainda cedo. A luz do dia jorrava, intensa e quente, pelas largas janelas, dando um toque alegre ao ambiente lânguido do salão, cujo soalho de madeira, gasto por tantas noites de jantares dançantes nos idos anos 1930, claramente implorava agora por arranjo. O Mondego escorregava para além do renque de tileiras e da movimentada rua em frente, sereno e preguiçoso, e a cidade agitava-se ao ritmo lento de quem vive a uns meros dois passos da província.

Dentro do hotel respirava-se uma atmosfera antiga, o que não era de admirar; a arquitetura rosada de estilo Belle Époque impregnava aquele local de um ambiente próprio, fazendo Tomás sentir-se transportado no tempo, recuando oitenta anos para o início do século XX. Isso era, aliás, algo que o deixava imensamente confortável; como historiador tinha absoluta necessidade de inalar os odores antigos, de sentir a história envolvê-lo no seu manto empoeirado, de mergulhar nas verdadeiras cápsulas do tempo que eram os edifícios com um passado.

Pediram um magret de pato com mel e laranja para o almoço. Talvez fosse mais adequada uma chanfana, achou Tomás, afinal de contas estavam em Coimbra, mas esse era um prato talvez demasiado pesado.

"Então diga lá", exclamou o historiador, uma vez concluída a conversa de circunstância. "O que estava afinal o professor Siza a investigar?"

Luís Rocha pegou numa fatia de pão e barrou-a com um patê de pato de aspecto delicioso.

"Meu caro professor Noronha", disse, trincando a fatia. "Estou certo de que leu o Prefácio à segunda edição da Crítica da Razão Pura, de Kant. Leu, não leu?"

Tomás arregalou os olhos.

"O... o Prefácio da terceira edição da Crítica da..."

"Segunda edição", corrigiu Luís. "O Prefácio da segunda edição."

"Bem... não posso dizer que... que tenha lido?", engasgou-se. "Quer dizer, já li a Crítica da Razão Pura, claro, mas confesso que... que o Prefácio dessa... enfim, dessa edição, confesso que não me lembro de... de ter lido."

"Sabe qual é a importância desse Prefácio?"

"Não faço a mínima idéia."

O físico barrou uma segunda fatia de pão com muito patê. Tomás olhou-o e não resistiu a pensar que o seu interlocutor parecia ser um lambão muito guloso, o que explicava a generosa curva que ele exibia no abdomen.

"Foi no Prefácio à segunda edição da Crítica da Razão Pura que Kant estabeleceu os limites da ciência", disse Rocha, mastigando esta nova fatia. "Ele concluiu que há três problemas fundamentais da metafísica que a ciência jamais será capaz de resolver." Exibiu três dedos. "Deus, a liberdade e a imortalidade."

"Ah, sim?"

"Kant era da opinião de que os cientistas nunca serão capazes de provar a existência de Deus, de determinar se temos ou não livre vontade e de perceber com toda a certeza o que se passa depois da morte. Essas questões, na sua opinião, já não pertencem ao domínio da física, mas da metafísica. Estão para além da prova."

Tomás balançou a cabeça, pensativo.

191

"Parece sensato."

"Parece sensato ao comum dos mortais", atalhou Luís Rocha. "Mas não ao professor Siza."

O historiador fez uma expressão intrigada.

"Ah, não? Porquê?"

"Porque o professor Siza acreditava que era possível obter a prova até para as questões da metafísica."

"Como?"

"O professor Siza acreditava que era possível demonstrar cientificamente a existência de Deus e resolver os problemas da livre vontade e da imortalidade. Aliás, ele achava que estas questões estavam todas relacionadas."

Tomás remexeu-se na cadeira, ainda a tentar digerir o que acabava de lhe ser revelado.

"Você está a insinuar que o trabalho científico do professor Siza estava relacionado com a questão da existência de Deus?"

"Não, não estou a insinuar isso."

"Ah, bom."

"Estou a afirmar isso."

Fez-se silêncio, com Tomás a ponderar as repercussões desta informação.

"Desculpe a minha ignorância", disse o historiador. "Mas é possível provar a existência de Deus?"

"Segundo Kant, não."

"Mas segundo o professor Siza, é?"

"Sim."

"Porquê?"

"Tudo depende do que se define por Deus."

"O que quer você dizer com isso?"

Luís Rocha suspirou.

"Ouça, o que é Deus para si?"

"Uh... não sei, é... é um ser superior, é o Criador."

"Essa não parece lá uma grande definição, pois não?"

"Não", concordou Tomás com uma gargalhada. "Mas, então, diga-me você. O que é Deus?"

"Bom, essa é a primeira pergunta a fazer, não é? O que é Deus?" Luís Rocha abriu as mãos. "Se estamos à espera de ver um patriarca velho e barbudo, a mirar a Terra com ar preocupado, vigiando o que cada um de nós faz e pensa e pede e que fala com uma voz grossa... bem, acho que iremos esperar até à eternidade para provar a existência de tal personalidade. Esse Deus pura e simplesmente não existe, é apenas uma construção antropomórfica que nos permite visualizar algo que está acima de nós. Nesse sentido, construímos Deus como uma figura paternal. Precisamos de alguém que nos proteja, que nos defenda do mal, que nos abrigue na sua concha 192

protetora, que nos dê consolo nas horas difíceis, que nos ajude a aceitar o inaceitável, a compreender o incompreensível, a enfrentar o que é terrível. Esse alguém é Deus."

Apontou para o teto. "Imaginamos que existe Alguém lá em cima que se preocupa imensamente connosco, Alguém a quem recorremos na hora da aflição em busca de reconforto, Alguém que nos observa e ampara, e... pumba! Ei-Lo! Aí está Deus!"

"Mas, então, se Deus não existe, do que estamos para aqui a falar?"

"Eu não disse que Deus não existe", corrigiu o físico.

"Ah, não?"

"O que eu disse é que não existe o Deus antropomórfico que nós habitualmente imaginamos e que herdamos da tradição judaico-cristã."

"Hmm", murmurou Tomás. "Está-me a dizer que o Deus da Bíblia não existe?"

"Mas quem é o Deus da Bíblia? Aquela personagem que manda Abraão matar o filho só para ver se o patriarca Lhe era fiel? Aquela personagem que lança a humanidade na desgraça só porque Adão comeu uma maçã? Mas alguém de bom senso acredita num Deus tão mesquinho e caprichoso? Claro que esse Deus não existe!"