"Mas, então, que Deus existe?"
"O professor Siza acreditava que Deus está em tudo o que nos rodeia. Não como uma entidade acima de nós, que nos vigia e protege, conforme preconizado pela tradição judaico-cristã, mas como uma inteligência criadora, sutil e onipresente, talvez amoral, que se encontra a cada passo, a cada olhar, a cada respiração, presente no cosmos e nos átomos, que tudo integra e a tudo dá sentido."
"Estou a ver", assentiu Tomás. "E ele acreditava ser possível provar a existência desse Deus?"
"Sim."
"Desde quando?"
"Desde que eu o conheço. Creio que ganhou essa convicção nos tempos em que esteve a estagiar em Princeton."
"E como é que se pode provar que Deus existe?"
Luís Rocha sorriu.
"Isso, meu caro, terá de perguntar ao professor Siza, não acha?"
"Mas, diga-me uma coisa, acredita mesmo que é possível fazer a prova da existência de Deus?"
"Depende."
"Depende de quê?"
"Depende do que você define por prova."
"Como assim? Explique lá isso melhor."
O físico barrou a terceira fatia de pão.
"Ouça, professor Noronha. O que é o método científico?"
"Bem, é um processo de recolha de informação sobre a natureza, suponho eu."
"É uma definição", admitiu Luís Rocha. "Mas eu tenho outra."
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"Então?"
"O método científico é um diálogo entre o homem e a natureza. Através do método científico, o homem faz perguntas à natureza e obtém respostas. O segredo está na forma como formula as perguntas e entende as respostas. Não é qualquer pessoa que é capaz de interrogar a natureza ou de compreender o que ela lhe diz. É preciso ter treino, é fundamental ser-se sagaz e perspicaz, é imprescindível possuir suficiente inteligência para captar a sutileza de muitas das respostas.
Entende isso?"
"Sim."
"O que eu quero dizer é que se pode perceber a existência ou inexistência de Deus em função da forma como se formulam as perguntas e em função da nossa capacidade de compreender as respostas. Por exemplo, a segunda lei da termodinâmica resulta de perguntas que foram feitas à natureza através de experiências sobre o calor. A natureza respondeu, mostrando que a energia passa do quente para o frio e nunca ao contrário, e que a transformação da energia entre corpos resulta sempre em desperdícios." Fez um gesto a abarcar todo o restaurante. "O mesmo se passa com a questão de Deus. Temos de saber quais as perguntas que precisamos de formular e como as vamos formular, e depois temos de ter capacidade para saber interpretar as respostas que vamos obter. É por isso que, quando se fala em fazer a prova da existência de Deus, temos de ser
cautelosos. Se alguém está à espera de que arranjemos imagens em DVD de Deus a observar o universo, com as Tábuas da Lei numa mão e a outra a cofiar as suas grandes barbas brancas, desengane-se. Essa imagem jamais será captada porque esse Deus não existe. Mas se estamos a falar em determinadas respostas da natureza a perguntas específicas... bem, aí poderá ser diferente."
"De que perguntas está a falar?"
"Sei lá... perguntas que tenham a ver com o raciocínio lógico, por exemplo."
Tomás abanou a cabeça.
"Não estou a entender."
"Olhe, o problema do Big Bang, de que ainda hoje falei na aula."
"Sim, o que tem isso?"
"O que tem isso? Mas não é óbvio? Então, se houve Big Bang, isso implica que o universo foi criado. Ora, tal conceito tem consequências profundas, não acha?"
"Tais como?"
"A questão da Criação remete para o problema do Criador. Quem criou a Criação?" Piscou um olho. "Hã?"
"Bem... uh... não poderá haver causas naturais?"
"Claro que sim. Nós estamos a falar de um problema natural." Colou o indicador à testa. "Meta isto na cabeça, professor Noronha. Deus é um problema natural. A conversa do sobrenatural, dos milagres, da magia... tudo isso é um disparate. A existir, Deus faz parte do universo. Deus é o universo. Percebe? A criação do universo não foi um acto artificial, foi um ato natural, em obediência a leis específicas e a determinadas constantes universais. Mas a questão volta sempre ao mesmo ponto. Quem foi que concebeu as leis do universo? Quem foi que determinou as constantes universais? Quem foi que deu o sopro de vida ao universo?"
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Bateu na mesa. "Estas, caro professor Noronha, é que são as questões centrais da lógica. A Criação remete para um criador."
"Você está a dizer-me que, através da lógica, poderemos provar a existência de Deus?"
Luís Rocha fez uma careta.
"Não, de modo nenhum. A lógica não faz prova nenhuma. Mas a lógica dá-nos indícios."
Inclinou-se na mesa. "Ouça, você tem de perceber que Deus, a existir, apenas deixa ver uma parcela da Sua existência e esconde a prova final por detrás de um véu de elegantes sutilezas. Você conhece os teoremas da Incompletude?"
"Sim."
"Os teoremas da Incompletude, ao demonstrarem que um sistema lógico jamais poderá provar todas as afirmações nele contidas, apesar das afirmações não demonstráveis serem verdadeiras, constituem uma mensagem com um profundo significado místico. É como se Deus, a existir, nos dissesse: Eu expresso-Me através da matemática, a matemática é a Minha linguagem, mas não vos darei a prova de que assim é." Pegou em mais uma fatia de pão. "Temos ainda o Princípio da Incerteza.
Esse princípio revela que nunca poderemos determinar em simultâneo com exatidão a posição e velocidade de uma partícula. É como se Deus nos dissesse: as partículas têm um comportamento determinista, Eu já defini todo o passado e o futuro, mas Eu não vos darei a prova final de que assim é."
"Estou a ver."
"A busca de Deus é como a busca da verdade das afirmações de um sistema lógico ou do comportamento determinístico das partículas. Nós nunca poderemos obter a prova final de que Deus existe, no sentido em que nunca poderemos obter a prova final de que as afirmações não demonstráveis de um sistema lógico são verdadeiras ou de que as partículas se comportam deterministicamente. E, no entanto, sabemos que as consequências dessas afirmações são verdadeiras e sabemos que as partículas se comportam de forma determinística. O que nos está vedado é a prova final, não os indícios de que assim é de fato."
"Então, quais são, afinal, os indícios da existência de Deus?"
"No campo da lógica, o indício mais interessante foi apresentado por Platão e Aristóteles, desenvolvido por São Tomás de Aquino e afinado por Leibniz. Trata-se do argumento causal. A idéia fundamental é simples de formular. Sabemos na física e na nossa experiência do dia-a-dia que todos os acontecimentos têm uma causa, sendo que as suas consequências se tornam causas de outros acontecimentos, num interminável efeito dominó. Agora imaginemos que vamos procurar as causas de todos os acontecimentos do passado. Mas, se o universo teve um início, isso significa que esta cadeia teve também um início, não é? Indo de causa em causa chegamos assim ao momento da criação do universo, aquilo a que hoje designamos de Big Bang. Qual a primeira causa de todas? O que pôs a máquina em movimento? Qual o motivo do Big Bang?"
Tomás fez um ar desconcertado.
"Julgo que você respondeu a essa pergunta na aula, não foi? Disse que, não tendo ainda sido criado o tempo, não podia haver causas que precedessem o Big Bang."