"É verdade", admitiu o físico. "Já vi que esteve atento à aula, sim senhor." Sorriu.
"Mas, deixe-me que lhe diga, essa é a forma que nós, os cientistas, usamos para 195
contornar essa desconfortável questão. A verdade é que tudo indica que o Big Bang existiu. Se existiu, algo o fez existir. A questão regressa sempre ao mesmo ponto. Qual a primeira causa? E o que causou a primeira causa?"
"Deus?"
Luís Rocha sorriu.
"É uma possibilidade", sussurrou. "Se for a ver bem, a hipótese de o universo ser eterno indicia a exclusão de Deus. O universo sempre existiu, não tem propósito, ele é.
Simplesmente, é. No universo eterno, sem começo nem fim, o dominó de causas é infinito, não existe uma primeira causa nem uma derradeira consequência." Ergueu o dedo. "Mas a Criação remete para uma primeira causa. Mais do que isso, havendo Criação é de admitir a existência de um criador. Daí a pergunta: quem pôs a máquina em movimento?"
"Já vi que a resposta é Deus."
"Repito que essa é apenas uma possibilidade. Este argumento lógico não constitui prova, apenas
um indício. Afinal de contas, pode existir um mecanismo qualquer, ainda desconhecido, que resolve esse problema, não é? Temos de ter cuidado para não usarmos o Deus-das-lacunas, de modo a não cairmos no erro de invocarmos Deus sempre que não temos resposta para um problema, quando, afinal, existe uma qualquer outra explicação. Tendo dito isto, importa sublinhar que a Criação remete para o problema do Criador e, por mais voltas que demos, a questão regressa sempre a este ponto crucial." Balançou a cabeça. "Por outro lado, se colocarmos Deus na equação, dizendo que foi Ele quem criou a Criação, deparamos logo com uma multiplicidade de problemas novos, não é?"
"Tais como?"
"Bem... o primeiro problema é saber onde estava Deus se, antes do Big Bang, não existia tempo nem espaço? E o segundo problema é determinar o que causou Deus.
Isto é, se tudo tem uma causa, Deus também tem uma causa."
"Então não há causa primeira..."
"Ou talvez haja, quem sabe? Nós, os físicos, chamamos ao Big Bang uma singularidade. Nesse sentido, poderíamos dizer que Deus é uma singularidade, da mesma maneira que o Big Bang é uma singularidade."
Tomás passou a mão pelo cabelo.
"Esse argumento parece interessante, mas não é conclusivo, pois não?"
"Não", concordou o físico. "Não é conclusivo. Mas há um segundo argumento que parece ter ainda maior força. Os filósofos dão-lhe nomes diferentes, mas o professor Siza chamava-lhe... uh... deixe cá ver... ah, sim! Chamava-lhe o argumento da intencionalidade."
"Intencionalidade? De intenção?"
"Exato. A questão da intencionalidade é, como sabe, do foro puramente subjetivo no que diz respeito à interpretação. Isto é, alguém pode fazer algo intencionalmente, mas quem está de fora nunca pode ter a certeza absoluta de que foi essa a intenção.
Pode-se presumir que a intenção seja uma, mas só o autor do ato sabe a verdade." Fez um gesto na direção de Tomás. "Se você derrubar agora esta mesa, eu posso interpretar esse ato, avaliando se você o fez intencionalmente ou não. Pode ter feito intencionalmente e depois ter fingido que foi acidental. Na verdade, só você é que tem 196
a certeza absoluta sobre a sua intenção, eu terei sempre uma certeza subjetiva, não é?"
"Sim", disse Tomás. "Mas onde quer você chegar?"
"Eu quero chegar a esta pergunta: qual a intenção da criação do universo?"
Luís ficou a mirar Tomás interrogativamente.
"Ora aí está uma pergunta que vale muito dinheiro", comentou o historiador com um sorriso.
"Qual é a resposta?"
"Se eu soubesse, ficava eu com esse dinheiro", disse Luís com uma gargalhada.
"Para uma resposta mais completa, no entanto, terá de perguntar ao professor Siza."
"Mas ele não está aqui, receio bem. Acha que é possível alguém vir a responder a essa pergunta?"
O físico respirou fundo, ponderando com cuidado as palavras que iria proferir.
"Acho que não é fácil responder afirmativamente a essa pergunta, mas existem alguns indícios interessantes."
"Diga lá."
"Há um argumento muito poderoso que foi dado por William Paley no século XIX."
Apontou para o soalho de madeira do restaurante. "Imagine que, ao entrar aqui, eu me deparava com uma pedra pousada ali no chão. Olhava para ela e pensava: como diabo esta pedra foi ali parar? Talvez respondesse logo a seguir: bom, a pedra sempre existiu, é uma coisa natural. E deixava de pensar no assunto, não é? Agora imagine que, em vez de uma pedra, eu deparava antes com um relógio. Será que podia dar a mesma resposta? Claro que não. Depois de analisar o complicado mecanismo do relógio, diria que se trata de uma coisa fabricada por um ser inteligente com um objetivo
específico. Agora a questão é a seguinte: por que razão não posso dar à existência da pedra a mesma resposta que dei em relação à existência do relógio?"
A pergunta ficou a pairar no ar por um momento.
"Estou a ver onde quer chegar", observou Tomás.
"Como membro pertencente à espécie inteligente que concebeu o relógio, eu sei qual é a intenção que presidiu à criação do relógio. Mas eu não pertenço à espécie que concebeu a pedra, pelo que não tenho uma certeza objetiva sobre a intencionalidade da sua criação. Mas posso presumir que houve uma intenção. Afinal de contas, alguém que nunca tivesse visto um relógio antes facilmente poderia concluir que se tratava da obra de uma mente inteligente, não é?"
"Ouça", argumentou Tomás. "Estamos a falar de coisas diferentes, não estamos?"
"Estaremos?"
"Claro que sim. Você não queira comparar a complexidade de um relógio com a complexidade de uma pedra."
Luís abanou a cabeça.
"Você não entendeu onde eu quero chegar."
"Então explique lá."
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O físico fez um gesto largo, abarcando tudo em redor.
"Olhe para tudo o que nos rodeia. Já viu?" Os seus olhos deambularam pelo restaurante e fixaram-se para além das janelas, no céu e na folhagem verde das tileiras. "Você já reparou na complexidade de todo o universo? Você já pensou na minúcia de organização necessária para pôr um sistema solar a funcionar? Ou para relacionar os átomos? Ou para conceber a vida?" Indicou as águas mansas do Mondego, que deslizavam como uma estrada paralela à marginal. "Ou para permitir que aquele rio flua daquela maneira? Não acha que isso é infinitamente mais complexo e inteligente do que o mecanismo de um mero relógio?"
Tomás ficou paralisado a mirar o seu interlocutor.
"Uh... de fato..."
"Então se uma coisa assim tão simples como um pequenino relógio é concebida por um ser inteligente e tem uma intenção por detrás de si, o que poderemos nós dizer de todo o universo? Se alguém que nunca viu um relógio antes é capaz de perceber, ao deparar pela primeira vez com um desses exemplares, que se trata de uma criação inteligente, por que razão não poderemos nós, ao constatar a grandiosidade e complexidade inteligente do universo, chegar à mesmíssima conclusão?"
"Estou a ver."
"É esta a base do argumento da intencionalidade. Se tudo o que vemos à nossa volta mostra um propósito e uma inteligência, por que não admitir que existe uma intenção na Criação? Se as coisas revelam inteligência na concepção, por que não admitir que isso se deve à possibilidade de ter sido algo ou alguém inteligente que as concebeu? Por que não admitir que existe uma inteligência por detrás destas criações inteligentes?"