"Mas onde está essa inteligência?"
"E onde está o autor do relógio? Se eu vir um relógio no chão, é possível que nunca venha a conhecer a inteligência que o construiu, não é? E, no entanto, nem por um momento duvidarei de que o relógio foi concebido por um ser inteligente. O mesmo se passa com o universo. Posso nunca vir a conhecer a inteligência que o criou, mas basta olhar em redor para perceber que esta é uma criação inteligente."
"Entendi."
"Só que, se é uma criação inteligente, e tudo indica que é, então coloca-se o problema de saber se estamos a estudá-la da maneira mais adequada."
"O que quer você dizer com isso?"
Luís Rocha fez um gesto que abarcou o seu próprio corpo.
"Repare nos seres vivos. Do que é feito um ser vivo?"
"De uma estrutura de informação", replicou Tomás, citando o que o pai lhe dissera.
"Exato, uma estrutura de informação. Mas o que compõe esta estrutura de informação são os átomos, não são? E muitos átomos juntos formam uma molécula. E
muitas moléculas juntas formam uma célula. E muitas células juntas formam um órgão. E todos os órgãos juntos formam um corpo vivo. Tendo dito isto, no entanto, é errado dizer que um ser vivo não passa de uma coleção de átomos ou de moléculas ou de células, não é? É certo que um ser vivo junta triliões de átomos, bilhões de moléculas, milhões de células, mas qualquer descrição que se limite a esses dados, embora verdadeiros, pecará por ser muito deficiente, não acha?"
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"Claro."
"A vida descreve-se em dois planos. Um é o plano reducionista, onde se encontram os átomos, as moléculas, as células, toda a mecânica da vida. O outro plano é semântico. A vida é uma estrutura de informação que se movimenta com um propósito, em que o conjunto é mais do que a soma das partes, em que o conjunto nem sequer tem consciência da existência e funcionamento de cada parte que o constitui. Enquanto ser vivo inteligente, eu posso estar num plano semântico a discutir aqui consigo a existência de Deus e uma célula do meu braço estar num plano reducionista a receber oxigênio de uma artéria. O eu semântico nem se apercebe do que o eu reducionista está a fazer, uma vez que se situam ambos em planos diferentes." Fitou Tomás. "Está a seguir o meu raciocínio?"
"Sim."
"Ora bem, o que eu lhe quero dizer é que estes dois planos podem ser encontrados em tudo. Por exemplo, eu posso analisar o livro Guerra e Paz num plano reducionista, não posso? Basta-me estudar a tinta usada num determinado exemplar, o tipo de papel que o constitui, a forma como a tinta e o papel são fabricados, se existem ou não átomos de carbono nesse exemplar... enfim, há uma multiplicidade de aspectos reducionistas que posso analisar. E, no entanto, nenhum desses aspectos me revela verdadeiramente o que é o Guerra e Paz, não é? Para saber isso, a minha análise não pode ser reducionista." Sorriu. "Tem de ser semântica."
"Estou a compreender."
"A música é a mesma coisa. Eu posso analisar All you need is love, dos Beatles, de uma forma reducionista. Estudarei o som da bateria de Ringo Starr, as vibrações das cordas vocais de John Lennon e Paul McCartney, a oscilação das moléculas do ar em função da emissão dos sons da guitarra de George Harrison, mas nada disso me revelará verdadeiramente o que é esta canção, pois não? Para a entender, terei de a analisar num plano semântico."
"Claro."
"No fundo, é como um computador. Há um hardware e há um software. O plano reducionista estuda o hardware, enquanto o plano semântico se centra no software."
"Tudo isso parece evidente."
"Então se tudo isto lhe parece evidente, deixe-me colocar-lhe um problema."
"Diga."
"Quando eu estudo o universo de forma a conhecer a sua matéria fundamental, a sua composição, as suas forças, as suas leis, que tipo de análise estou a fazer?"
"Não percebo a pergunta..."
"O que eu quero saber é se é uma análise reducionista ou semântica."
Tomás considerou por instantes a questão.
"Bem... uh... parece-me reducionista."
O sorriso no rosto de Luís Rocha alargou-se mais.
"O que nos leva à pergunta seguinte: será possível fazer uma análise semântica do universo?"
"Uma análise semântica do universo?"
"Sim, uma análise semântica. Então se eu consigo fazer uma análise semântica de uma coisa tão simples como o Guerra e Paz ou o Ali you need is love, não posso 199
fazer uma análise semântica de algo tão rico e complexo e inteligente como é o universo?"
"Bem..."
"Então se analisar a tinta e o tipo de folha de um exemplar do Guerra e Paz constitui uma forma muito incompleta e redutora de estudar esse livro, por que diabo analisar os átomos e as forças existentes no cosmos há-de ser uma forma satisfatória de estudar o universo? Não haverá também uma semântica no universo? Não existirá igualmente uma mensagem para além dos átomos? Qual a função do universo? Por que razão ele existe?" Suspirou. "É esse o problema da matemática e da física hoje em dia. Nós, os cientistas, estamos muito concentrados em estudar a tinta e o papel de que é feito o universo. Mas será que esse estudo nos revela verdadeiramente o que é o universo? Não precisaremos nós de o estudar também num plano semântico? Não teremos nós de escutar a sua música e entender a sua poesia? Será que, ao pensar no universo, nós estamos apenas focados no hardware e ignoramos uma dimensão tão importante como a do software}" Suspirou. "Foram estas questões que orientaram o trabalho do professor Siza ao longo destes anos. Ele queria perceber qual a semântica do universo. Ele queria conhecer o software que se encontra programado no hardware do cosmos."
"Entendi", disse Tomás. "Mas como se pode estudar o software do universo?"
"Isso terá de perguntar ao professor Siza, claro", retorquiu Luís. "Mas eu acho que a resposta a essa pergunta depende da resposta a uma outra pergunta, muito simples de formular: o que vemos em torno de nós, tanto no microcosmos como no macrocosmos, é uma criação ou é o próprio ser inteligente?"
"Como assim?"
O físico exibiu a palma da sua mão esquerda.
"Quando olhamos para a minha mão, estamos a ver uma criação minha ou estamos a ver uma parte de mim?" Olhou em redor. "Quando olhamos para o universo, estamos a ver uma criação de Deus ou estamos a ver uma parte de Deus?"
"O que acha você?"
"Eu não acho nada. Mas o professor Siza achava que tudo é uma parte de Deus.
Se ele tiver razão, quando for concebida a Teoria de Tudo será possível, em princípio, conter aí uma descrição de Deus."
"Você acha?"
"É isso o que os físicos estão a tentar fazer agora, não é? Conceber uma Teoria de Tudo. Embora eu ache que não vão conseguir."
"Porquê?"
"Por causa dos teoremas da Incompletude. Esses teoremas, mais o Princípio da Incerteza, mostram que nunca se conseguirá fechar o círculo. Haverá sempre um véu de mistério no fim do universo."
"Então por que razão continuam a tentar formular essa teoria?"
"Porque nem todos concordam comigo. Há quem ache que é possível conceber uma Teoria de Tudo. Há quem ache até que é possível conceber uma equação fundamental."
"Uma equação fundamental? O que quer dizer com isso?"