"É porque você não viu o escritório", observou Luís Rocha, passando à frente e metendo pelo curto corredor diante do hall. "Quer ver? Venha daí."
Ao fundo do corredor havia três portas. O físico abriu a da esquerda, mostrando a entrada protegida por uma fita da polícia, e fez sinal a Tomás para espreitar.
"Caramba", exclamou o historiador.
Um mar de livros e papéis e pastas espalhava-se pelo chão num caos indescritível, enquanto as prateleiras dos móveis de madeira se apresentavam quase vazias, ornadas apenas por um ou outro volume que resistira ao vendaval.
"Já viu isto?", perguntou o físico.
Tomás não conseguia despregar os olhos daquele amontoado de obras e documentos.
"Foi você que deu com esta confusão?"
"Fui", assentiu Luís. "Eu tinha combinado com o professor Siza vir cá para verificar uns cálculos que ele tinha feito sobre as consequências de uma hipotética alteração de massa dos electrões. O professor tinha faltado a uma aula dias antes, mas não liguei muito a isso, sabendo, como sei, que ele é um bocado distraído. Mas quando cheguei ao portão apercebi-me de que a porta de entrada se encontrava escancarada. Achei isso estranho e entrei. Chamei pelo professor e ninguém respondeu. Vim ver ao escritório e deparei-me com... com isto", disse, exibindo aquele caos. "Percebi logo que tinha ocorrido um assalto e chamei a polícia."
"Hmm", murmurou Tomás. "E o que fizeram eles?"
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"Primeiro, nada de especial. Selaram a área e andaram a tirar umas amostras.
Depois veio cá a Judiciária várias vezes e fez muitas perguntas, sobretudo sobre o que o professor guardava aqui. Queriam saber se havia coisas de valor. Mas depois as perguntas evoluíram e algumas delas tornaram-se bem estranhas, confesso."
"Como por exemplo?"
"Eles queriam saber se o professor viajava muito e se conhecia gente do Médio Oriente."
"E você? O que respondeu?"
"Bem... uh... é evidente que o professor viajava. Ia a conferências e a seminários, contactava outros cientistas... enfim, o normal para quem dedica a vida à investigação, suponho."
"E ele conhecia pessoas do Médio Oriente?"
Luís Rocha esboçou uma careta.
"Devia conhecer, sei lá. Ele falava com muita gente, não é?"
Tomás virou a cara e observou de novo toda a confusão de livros espalhados pelo chão, parecia que tinha para ali sido despejado um monte de entulho. Era evidente que alguém chegara ao local e atirara tudo para o chão, em busca não se sabe bem do quê. Ou melhor, Tomás sabia. Sabia Tomás Noronha, sabia Frank Bellamy e sabiam poucas mais pessoas. Os assaltantes eram os homens do Hezbollah e procuravam Die Gottesformel, o velho manuscrito que acabaram por encontrar algures naquele escritório.
Remexendo-se atrás de Tomás, Luís pôs a mão na maçaneta da porta do meio e abriu-a.
"Vou aqui ao quarto de banho", disse, entrando no pequeno compartimento decorado a azulejos brancos e azuis. "Fique à vontade, sim?"
Trancou a porta.
Momentaneamente só, Tomás passou os olhos uma derradeira vez pelo escritório vandalizado e deu meia-volta. A sua atenção reteve-se na terceira porta do corredor; esticou o braço e abriu-a. Uma grande cama revelava tratar-se do quarto do professor Siza.
Movido pela curiosidade, Tomás entrou na penumbra do quarto e observou-o com atenção. Pairava um certo cheiro a mofo no ar, era evidente que o compartimento se encontrava fechado havia várias semanas, como se estivesse suspenso no tempo, à espera que o resgatassem para a vida. As persianas apresentavam-se corridas, criando uma atmosfera tranquila naquele aposento silencioso, um lugar sereno recolhido à meia-luz. Em flagrante contraste com o que acontecia na porta ao lado, tudo se apresentava aqui arrumado, cada objecto no seu lugar, cada lugar com uma função.
Uma fina camada de pó assentara sobre os móveis, dando a impressão de que a passagem do tempo se media pela poeira acumulada. O historiador abriu uma gaveta e deparou com molhos de
cartas e postais. Pegou no molho de cima e analisou datas; eram dos últimos meses. Presumiu que por cima estivesse a correspondência mais recente e por baixo a mais antiga. Olhou para as cartas e procurou identificá-las. A maior parte parecia ser informações da faculdade, com notícias sobre colóquios, novidades editoriais, pedidos de informação bibliográfica e outras referências de caráter puramente acadêmico.
Encontrou, por entre os envelopes, três postais e analisou-os distraidamente. Dois 204
eram de família e tinham letra escrita com mão feminina, mas o terceiro despertou-lhe a atenção. Olhou para a face e para o verso e sentiu a curiosidade aumentar.
Trakatrakatraka.
O ruído metálico de uma chave a rodar numa fechadura fê-lo virar a cara para o corredor. Luís terminara o que tinha a fazer no quarto de banho e destrancava a porta para sair.
Com um gesto rápido e dissimulado, Tomás escondeu este terceiro postal no bolso do casaco e adotou uma pose distraída.
A primeira coisa que Tomás fez quando chegou a casa foi procurar o número na memória do telemóvel e efetuar a chamada.
"Greg Sullivan here", anunciou a voz anasalada do outro lado da linha.
"Olá, Greg. Daqui Tomás Noronha. Tudo bem?"
"Ah! Olá, Tomás. Tudo bem?"
"Tudo ótimo."
"Ouvi dizer que você teve uma vida difícil lá em Teerã."
"Sim, foi complicado."
"Mas saiu-se bem, uh? Como um profissional!"
"Não exageremos..."
"A sério! Qualquer dia você chega ao pé de mim com um sotaque todo british e diz: o meu nome é Noronha. Tomás Noronha!" Soltou uma gargalhada. "Uh? Um verdadeiro James Bond!"
"Não goze, vá lá."
"Ouça, estou orgulhoso de si, sabia? Atta boy!"
"Pronto, chega." Tomás pigarreou, tentando ir diretamente ao assunto que o levara a fazer aquele telefonema. "Greg, preciso de um favor seu."
"You name it, you got it."
"Preciso que ligue lá para Langley e peça para o Frank Bellamy me telefonar com urgência."
"Uh?"
"O Frank Bellamy que me ligue com urgência."
Fez-se um curto silêncio do outro lado da linha.
"Ouça, Tomás, o mister Bellamy não é um tipo qualquer", disse Greg, a voz a assumir subitamente um tom respeitoso. "Ele é o diretor de um dos quatro directorates da CIA, com acesso direto ao gabinete oval da Casa Branca. Não são as pessoas que querem falar com ele, percebe? É ele que quer falar com as pessoas."
"Sim, já entendi", assentiu Tomás. "Mas também entendi que, sendo ele assim tão importante, se viajou uma vez até Lisboa para falar comigo e se falou mais duas vezes ao telefone comigo é porque considera que eu estou envolvido num projeto crucial para a agência. Se assim é, ele certamente terá interesse em ligar-me logo que saiba que eu tenho algo para lhe dizer."
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Novo silêncio no outro lado da linha.
"E tem?"
"Tenho."
Greg suspirou.
"Okay, Tomás. É melhor que você saiba o que está a fazer. Mister Bellamy não é pessoa com quem se deva brincar." Hesitou, como se estivesse a dar uma derradeira oportunidade a um condenado para se redimir. "Quer mesmo que eu telefone para Langley?"
"Telefone."
"Okay."
Tirou do bolso do casaco o postal que furtara do quarto do professor Siza e estudou-o com atenção. O lugar do remetente encontrava-se em branco, como se tal informação fosse redundante para o destinatário. O postal apenas continha uma curta mensagem em letra cuidada, as linhas desenhadas com devoção, como se a estética fosse tão importante quanto o conteúdo.