Meu querido amigo,
Foi bom receber novidades suas.
Estou cheio de curiosidade em relação a essa sua descoberta.
Terá chegado enfim o grande dia?
Procure-me no mosteiro.
Tenzing Thubten
Leu várias vezes as curtas linhas escritas no postal. Não precisava de ser muito intuitivo para perceber que esta mensagem levantava uma ponta do véu, mas deixava o essencial permanecer misteriosamente oculto por baixo de sutis subentendidos.
Quem era este Tenzing Thubten? Se chamava "querido amigo" ao professor Siza é porque certamente o conhecia bem. Mas de onde? Se Thubten dizia ter sido "bom receber novidades suas" é porque o professor Siza tomara a iniciativa de o contactar.
Se o remetente se manifestava "cheio de curiosidade em relação à sua grande descoberta" é porque o professor Siza lhe comunicara esse fato. E se Thubten se questionava sobre se "terá chegado enfim o grande dia?" é porque essa descoberta, qualquer que ela fosse, iria provavelmente despoletar um acontecimento aguardado por ambos havia muito tempo.
Mas que raio de charada é esta?, interrogou-se Tomás a cada leitura da mensagem garatujada no postal.
O telemóvel tocou.
"Hello, Tomás", murmurou a inconfundível voz rouca. "Ouvi dizer que queria falar comigo."
"Olá, mister Bellamy. Como está o tempo em Langley?"
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"Não estou em Langley", devolveu a voz. "Encontro-me num avião a sobrevoar um território cujas coordenadas não lhe posso dar. Estou a falar de uma linha não segura, o que significa que você terá de ter cuidado com o que diz. Entendeu?"
"Sim."
"Então diga lá por que razão precisa assim tanto de falar comigo."
Quase sem dar conta disso, Tomás endireitou-se na cadeira, parecia uma sentinela a colocar-se em sentido diante de um oficial.
"Mister Bellamy, julgo ter percebido finalmente do que trata o documento que nos tem estado a apoquentar e que me levou a fazer aquela viagem."
Fez-se um silêncio curto, a chamada carregada de estalidos de estática.
"Really?"
"Com base no que descobri, parece-me seguro dizer que o tema do documento não deve ser preocupante. Trata-se, aliás, de um assunto inteiramente diferente daquele que nós pensávamos que era."
"Tem a certeza?"
"Bem... uh, quer dizer, tenho uma certeza relativa, não é? É a certeza que posso ter em função do que descobri, mais nada. A certeza absoluta só a poderei ter se ler o próprio manuscrito, o que neste momento não me parece possível pelos motivos que o senhor conhece."
"Mas você acha mesmo que o tema do documento não é aquele que nos preocupa?"
"Acho."
"Então como explica que o nosso fucking geniozinho tenha comentado em privado que aquilo que tinha descoberto iria provocar uma explosão de uma violência nunca vista?"
Tomás hesitou.
"Pois... uh... ele disse mesmo isso?"
"Disse, pois. Disse-o a um físico que era nosso informador. Não se lembra de eu já lhe ter contado essa história quando fui aí a Lisboa?"
"Pois foi."
"Então em que ficamos?"
O historiador respirou fundo.
"Só há uma maneira de eu deslindar isto", disse.
"Qual é?"
"Preciso de fazer uma nova viagem."
"Para onde?"
"Estamos numa linha que não é segura, não é? Quer mesmo que eu lhe diga aqui qual o destino?"
Frank Bellamy praguejou.
"Tem razão", assentiu de imediato. "Ouça, eu vou contactar a nossa embaixada em Lisboa e dar instruções para que lhe sejam disponibilizados todos os fundos de que necessitar, está bem?"
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"Muito bem."
"So long, Tomás. Você é um fucking gênio."
Frank Bellamy desligou e Tomás ficou um instante a mirar o telemóvel. O diabo do homem tinha o condão de o enervar. Pensando bem, considerou, esse parecia ser um dom que Bellamy manifestava em relação a toda a gente, bastava ver a postura de quase vassalagem que Greg Sullivan e Don Snyder lhe prestaram durante aquele memorável encontro em Lisboa. Tomás imaginou o homem da CIA numa reunião no gabinete oval da Casa Branca e um sorriso aflorou-lhe aos lábios. Será que também o presidente dos Estados Unidos tinha um ataque de diarreia só por falar com esta figura sinistra?
Talvez para compensar os calafrios que Bellamy lhe provocava, Tomás sentiu naquele instante saudades de Ariana. Tinha sido apenas alguns dias antes que se despedira dela e contorcia-se já de nostalgia. Todas as noites sonhava com ela, via-a ao longe e chamava-a, mas Ariana afastava-se, arrastada por uma força desconhecida, como se alguém a sugasse para além do horizonte. Tomás acordava nesses instantes muito angustiado, o coração apertado, um nó na garganta.
Suspirou.
Procurando abstrair-se da presença feminina que o assombrava, baixou os olhos e estudou novamente o postal que mantinha na mão. O espaço do remetente permanecia em branco, mas Tomás sabia que não precisava de mais informações do que aquelas de que já dispunha. Possuía o nome do remetente, esse tal de Tenzing Thubten, e, apesar da morada não ser referenciada, o essencial estava proclamado na outra face do postal, não estava?
Virou o postal e contemplou o belo mosteiro branco e castanho que se erguia por entre a neblina, no topo do promontório, dominando o casario baixo espraiado em redor. Sorriu. Sim, pensou. De fato, não havia quem não conhecesse aquele palácio tibetano.
O Potala.
XXVIII
A luz cristalina e pura das montanhas jorrou pela janela do quarto e despertou Tomás. O historiador ainda permaneceu um preguiçoso instante encolhido no calor dos cobertores, prolongando a doce moleza do despertar, mas acabou por se levantar a custo e ir à janela espreitar o novo dia. A manhã nascera límpida e fria e os raios de sol cintilavam na cobertura alva dos picos circundantes, como jóias incrustadas num lençol lácteo que alguém estendera sobre a rocha castanha; era a neve a resplandecer no topo das serras escarpadas que circundavam a cidade, recortando de branco o azul profundo do céu.
Amanhecer em Lhasa.
Era o terceiro amanhecer de Tomás na capital do Tibete. Enchendo os pulmões de ar e endireitando o corpo, verificou, aliviado, que os males dos últimos dias tinham desaparecido, sentia-se agora melhor e com mais energia.
Pouco depois de aterrar no aeroporto Gonggar começou a ser afligido por dores de cabeça e náuseas, para além de um cansaço ofegante que não o largava. Na primeira noite teve muita dificuldade em adormecer, mas só quando vomitou é que decidiu telefonar para a recepção e pedir um médico. Não havia médico, mas o recepcionista, 208
habituado a ver aqueles sintomas manifestarem-se com frequência nos recém-chegados, fez um diagnóstico instantâneo.
"Acute Mountain Sickness", disse, quando o visitou no quarto.
"O quê?"
"É a síndrome da altitude", explicou. Olhou para a mala deitada na carpete. "O
senhor chegou de avião, foi?"
"Sim."
"Quase todos os estrangeiros que vêm de avião sofrem desse mal. Deve-se à passagem rápida entre o nível do mar e a altitude, sem adaptação em pontos intermédios."
"Mas há algum problema com isso?"
"Claro que há. Sabe, a pressão atmosférica aqui é muito inferior à do nível do mar. Isso significa que a pressão não chega para empurrar o oxigênio para o sangue e é por isso que as pessoas se começam a sentir mal."
Tomás inspirou fundo, tentando sentir a diferença. De fato, o ar parecia mais leve, quase rarefeito.