"E agora? O que faço?"
"Nada."
"Nada? Mas isso não é solução..."
"Pelo contrário, é a melhor solução. O senhor não deve fazer nada. Fique aqui no quarto, descanse e vá-se adaptando devagar à altitude. Não faça esforços. Procure respirar mais rápido, para compensar a falta de oxigénio no sangue. O seu coração provavelmente está a bater mais depressa, pelo que deve descansar. Daqui a alguns dias irá sentir-se melhor, vai ver. Nessa altura poderá então sair lá para fora." Ergueu um dedo, à maneira de aviso. "Mas, atenção, se piorar isso é muito mau sinal. Poderá significar que está a desenvolver uma forma maligna do mal das alturas, devido a complicações pulmonares ou cerebrais. Nesse caso, terá de ser imediatamente retirado do Tibete."
"E se não for retirado?"
O empregado arregalou muito os olhos rasgados e a tez trigueira.
"Morrerá."
Ao terceiro dia sentiu-se de fato melhor e, mais animado, decidiu sair à rua.
Perguntou as direções na recepção do hotel e meteu vagarosamente pela Bei Jin Guilam, em direção ao majestoso Potala. Atravessou o Shõl, situado no sopé do magnífico palácio do Dalai-Lama, e não pôde deixar de se sentir chocado por ver toda aquela área transformada numa despropositada metrópole chinesa, com uma grande avenida entupida de tráfego.
Diante do Potala abria-se uma enorme praça com uma escultura pirosa, à frente da qual se amontoavam turistas chineses a tirar fotografias com o palácio atrás.
Depois da praça, a larga avenida enchia-se de estabelecimentos de aspecto moderno, eram boutiques, lojas de equipamento desportivo, de roupa para criança, vestuário de marca, sapatarias, restaurantes, gelatarias, pastelarias, tabacarias, floristas, farmácias, oculistas, tudo numa grande azáfama, com múltiplos néons coloridos visíveis por toda a parte, era como se o Potala fosse um corpo estranho, um colossal intruso tibetano implantado num imenso mar chinês.
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Alguns quarteirões adiante, o visitante virou à direita e entrou enfim no tranquilo bairro tibetano. Penetrou no emaranhado de ruelas estreitas, as artérias contorcendo-se em todas as direções, por vezes alargando-se, sempre emparedadas por velhos edifícios de adubo branco e janelas negras, em alguns casos o caminho atravessado por poças de lama ou pelo cheiro repelente de excrementos.
"Hello", saudou uma voz feminina vinda de cima. Era uma rapariga tibetana que acenava de uma janela. "Tashi deleh! Hello!”
"Tashi deleh", disse Tomás, devolvendo o cumprimento com um sorriso.
Todos pareciam arranjar ali um momento para cumprimentar o forasteiro; com um sorriso aberto, um aceno efusivo, uma vénia discreta, um "hello" em inglês ou um
"tashi deleh" tibetano, por vezes deitando a língua de fora como se troçassem de si.
Naquele recanto acanhado, por entre ruelas escondidas e longe da influência chinesa, escondia-se o Tibete que sempre imaginara.
O pacato labirinto desembocou numa enorme e movimentada praça. Uma multidão agitava-se por todo o perímetro, viam-se nómadas e cabras, peregrinos de Amdo, viajantes de Kham, monges prostrados ou a recitar mantras, saltimbancos a efetuar acrobacias, bancas a vender carpetes e pinturas tbangka, chapéus, roupas, jerry cans com combustível, fotografias do Dalai-Lama, bugigangas de Katmandu, chá de Darjeeling, cachecóis kadab de Sechuan, amuletos pondu de Drepung, cortinas de Shigatse, lenços de Caxemira, plantas medicinais dos Himalaias, velhas moedas indianas transformadas em ornamentos, anéis de prata decorados com pedras turquesa, tudo o que se possa imaginar estava ali à venda em todas as cores.
"Hello"', chamou uma vendedora.
"Look'ee! Look'ee!”, gritou outra, enquanto uma terceira exibia figuras religiosas esculpidas em osso de iaque: "cheap'ee, cheap'ee!"
Uma densa mole humana, compacta, empurrava-se pela praça, murmurando mantras e girando mani colo, as rodas de orações que empunhavam na mão direita, umas feitas de cobre, outras de jade, algumas de sândalo; era o Barkhor, o grande movimento religioso que contornava o templo no sentido dos ponteiros do relógio, os peregrinos observando os acrobatas, mirando os monges, espreitando as bancas ou simplesmente concentrados no trajeto circum-ambulatório religioso em torno do perímetro.
Tomás não precisou de verificar no mapa para perceber que aquele era o bazar de Tumskhan, montado em torno do circuito religioso do Barkhor. Por entre as casas tradicionais tibetanas, erguidas com fachadas brancas e belas varandas de madeira incrustadas nas esquinas, abria-se a entrada do templo. A porta de acesso era decorada por pilares vermelhos, que suportavam uma estrutura adornada em tecido de iaque, no topo da qual cintilava uma imagem sagrada, a das figuras em ouro de dois veados voltados para uma harmoniosa dharmachakra, a Roda da Lei.
O templo de Jokhang.
Alguns peregrinos mantinham-se prostrados no chão de pedra do Barkhor, diante do templo, entoando um cavado "ooooooooooooooooom" em uníssono, era o fonema sagrado do "om mani pedme hum", o mantra de seis sílabas, a prece da Criação.
Aquele timbre fundo e gutural, que os budistas dizem ser o som primordial, a sílaba que gerou o universo, ressoava longamente pela praça, entrecortado apenas pelo ruído combinado das expirações ritmadas, como se os crentes tivessem recebido um soco no estômago. O passo dos peregrinos era também pontuado pelo estridular metálico do korten, os moinhos de orações dourados dispostos em fila junto à porta.
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Tomás cortou por entre a multidão e cruzou a entrada do santuário, calcorreando um grande átrio a céu aberto. O desagradável cheiro de manteiga de iaque rançosa flutuava no ar, exalado pelos devotos que levavam para o Jokhang pedaços da gordura amarela para a espalharem com colheres pelo recinto. Procurando escapar ao odor repelente, o visitante refugiou-se por momentos junto a pauzinhos de incenso incandescente e observou a cena em redor de si. O pátio apresentava-se repleto de peregrinos que percorreram centenas de quilómetros para ali se juntarem, muitos deitados no chão com a testa colada à pedra a recitar preces, outros agitando rodas metálicas de oração, alguns a espalharem a manteiga de cheiro nojento em altares diante de pequenos Budas.
Um ocidental de aspecto bonacheirão aproximou-se de Tomás com uma máquina fotográfica pendurada ao peito.
"Belo espectáculo, hem?"
"Sim."
O homem apresentou-se. Chamava-se Carlos Ramos e era um mexicano que vivia em Espanha.
Depois de trocarem amabilidades, Carlos mirou a multidão de crentes e abanou a cabeça.
"Depois de ler muitos livros, percebi finalmente o que é o budismo", comentou. "É
um jogo de pontos."
"Como assim, um jogo de pontos?"
"É simples", sorriu o mexicano. "Quanto mais mérito tivermos durante a vida, maiores as nossas possibilidades de conseguirmos uma boa reencarnação da próxima vez. Se fizermos poucos pontos, havemos de reencarnar como insetos ou lagartos, por exemplo. Mas se formos muito piedosos e atingirmos um determinado nível de pontos, poderemos voltar como seres humanos outra vez. E se formos mesmo bonzinhos...
bueno, nesse caso regressaremos como homens ricos ou até como lamas. Percebe? É
um pouco como num jogo de computador. Mais pontos agora significam uma melhor vida na próxima reencarnação."
Tomás riu-se com a forma simplória como o budismo era apresentado por aquele turista.
"E como é que se conseguem esses pontos?"
O mexicano fez um gesto em direção à multidão que enchia o Jokhang.