"Prostrando-se, caray! Está a ver? Quanto mais se prostram, mais pontos obtêm.
Há tipos que se prostram mais de mil vezes num único dia." Fez uma careta. "Olhe que mil vezes é muito, hã? Dá cá uma dor nas costas... A maior parte do pessoal fica-se pelas cento e oito vezes, dizem que é um número sagrado e sempre poupa no esforço, não é?" Mirou uma cabra que alguém trouxera para o templo. "Mas há outras maneiras. Por exemplo, salvando a vida de um animal. Isso vale pontos, o que pensa você? Ou dar esmola a um pedinte, isso também conta para o somatório da boa reencarnação."
"E quem tiver uma vida perfeita?"
"Oh, isso é a lotaria do budismo! O El Gordo! É que o número máximo de pontos leva-nos para o nirvana, sabia? O nirvana significa que quebramos o ciclo vicioso da vida terrena. Aí, no pasa nada! Acabam-se os problemas com as reencarnações."
211
"Isso é um pouco como o cristianismo, não acha?", observou Tomás. "Quanto mais bonzinhos formos, mais pontos somamos no céu e maiores as possibilidades de ganharmos um lugar no paraíso."
O mexicano encolheu os ombros.
"Ora aí está", exclamou. "O grande tema de todas as religiões é, afinal, a soma de pontos."
Depois de esboçar um último sorriso, Tomás despediu-se do turista e mergulhou no templo.
O interior do velho edifício encontrava-se envolto numa penumbra, pontuada pelas velas de manteiga de iaque acesas em fila nos altares. Tirou um papel do bolso e, numa zona de luz, procurou a direção anotada. Uma vez orientado, atravessou o interior sombrio e foi ter a um pátio soalheiro. Um monge calvo, vestido com um tasen escarlate da ordem Galupka, materializou-se da sombra, na porta das capelas, e o visitante interpelou-o.
"Jinpa Khadroma?"
O monge olhou-o com atenção. Depois de uma ligeira hesitação, curvou-se numa vênia e fez sinal ao estranho para o seguir.
Ascenderam ao primeiro terraço do Jokhang e meteram à esquerda por um discreto corredor ao ar livre, numa zona tranquila; lá ao fundo, depois de uma esquina, o monge imobilizou-se diante de uma cortina kuou. Ergueu levemente o canto da cortina e espreitou lá para dentro, murmurando uma pergunta; uma voz soou do outro lado e o monge abriu toda a cortina, fez uma vênia para Tomás, indicou-lhe que entrasse, curvou-se numa última vénia e desapareceu.
O quarto era pequeno e sombrio. Havia uma única janela rasgada na parede e era por ali que jorrava luz sobre a esteira onde se sentava um monge gordo. Fotografias do exilado Dalai-Lama e do falecido Panchen Lama sorriam para o visitante, ambas pregadas num armário, e um monte de livros apresentava-se empinhado sobre uma mesinha, num equilíbrio delicado. O monge tinha um pequeno volume na mão; fechou-o com brandura, ergueu a cabeça e acolheu o estrangeiro com um sorriso.
"Tashi deleh", cumprimentou.
"Tashi deleh."
"Eu sou Jinpa Khadroma", anunciou o monge. "Queria falar comigo?"
Tomás apresentou-se e acenou com o papel que trazia na mão, rabiscado por Greg Sullivan na embaixada americana em Lisboa.
"O seu contato foi-me dado... uh... por uns amigos, que me disseram que o senhor me poderia ajudar."
"Que amigos?"
"Bem... receio que não os possa identificar. Mas são amigos."
O monge torceu os lábios grossos.
"Hmm", murmurou, pensativo. "E em que o posso ajudar?"
"Procuro uma pessoa aqui no Tibete."
Tomás retirou o postal do bolso e estendeu-o a Jinpa. O monge pegou no postal, observou a imagem do Potala e analisou a mensagem no verso.
"O que é isto?"
212
"É um postal enviado por alguém do Tibete a um amigo meu que desapareceu.
Tenho razões para supor que esse tibetano me poderá ajudar a perceber o que aconteceu a esse meu amigo. O tibetano chama-se... uh..." Tomás inclinou-se e espreitou a assinatura escrevinhada no postal preso nos dedos de Jinpa. "Tenzing Thubten."
O monge cravou-lhe os olhos, sem trair a mínima emoção, e pousou o postal junto a umas fotografias do Dalai-Lama, mesmo ao lado.
"Ninguém tem acesso a Tenzing Thubten assim sem mais nem menos", disse Jinpa. "Temos primeiro de verificar umas coisas e falar com umas pessoas."
"Com certeza."
"Amanhã terá a sua resposta. Se constatarmos que há algo suspeito sobre si, nunca verá a pessoa que procura. Mas se estiver tudo bem, chegará ao seu destino."
Fez um gesto rápido com a mão, quase como se se despedisse. "Apareça às dez da manhã em ponto diante da capela de Arya Lokeshvara."
Tomás tomou nota.
"Arya Lokeshara?"
"Lokeshvara."
Corrigiu a anotação.
"Hmm", murmurou o visitante. "E onde é isso?"
Jinpa virou a cara e apontou com o queixo na direcção do postal pousado ao seu lado.
"No Palácio Potala."
XXIX
Uma chuva fina e pertinaz cobria Lhasa, lançando uma neblina pardacenta sobre a capital tibetana, quando Tomás Noronha iniciou a lenta ascensão ao promontório que se erguia acima do casario raso. Caminhando com concentrado vagar, sempre a controlar o ritmo da respiração e das batidas cardíacas, escalou os degraus em Z até atingir o nível dos telhados do Shöl. Parou então, ergueu a cabeça e contemplou o magnífico palácio que o aguardava.
O Potala repousava majestosamente sobre a pedra escarpada, a longa fachada branca a abraçar a rocha escura, o centro avermelhado erguendo-se como a torre de um castelo, as ranhuras das janelas espreitando a cidade que despertava no sopé.
Todo o palácio parecia um grandioso farol, uma imensa fortaleza alteada sobre Lhasa, vigilante e protectora, erguendo-se com silenciosa imponência por entre as brumas para guiar o espírito do Tibete. Bandeiras coloridas de orações flutuavam ao vento, o pano batendo com força. Ofegante, o coração saltitando de cansaço e excitação, inclinou-se sobre o muro e admirou a cidade que se espraiava pelo planalto, encaixada por entre as montanhas, como se cada casa fosse um súbdito prostrado diante da divindade que o observava do Potala.
Puro.
Tudo dali parecia sereno, transparente, elevado. Puro. Nunca como naquele lugar experimentou a sensação de se encontrar algures entre o céu e a terra, flutuando sobre a neblina com o espírito livre, emergindo da massa dos homens para tocar Deus, 213
sentindo a eternidade comprimida num segundo, o efémero estendendo-se pelo infinito, o princípio do Ômega e o fim do Alfa, a luz e as trevas, o universo num sopro, a impressão de que a vida tem um sentido místico, de que há um mistério que se esconde para lá do que é visível, um enigma gravado em letra antiga num código hermético, um velho som que se pressente mas não se escuta.
O segredo do mundo.
Mas um vento gelado, que soprava forte e agreste nas alturas, logo arrefeceu a chama do arcano que lhe ardia no peito e obrigou-o a apressar o passo na direcção das entranhas escurecidas do palácio adormecido. Atingiu o Deyang Shar, o grande pátio externo do Potala, e escalou a escadaria até entrar no Palácio Branco, a antiga zona residencial do Dalai-Lama. Mergulhou no calor dos andares superiores e sentiu uma aura de mistério encher aquele lugar.
Os compartimentos sombrios, iluminados por frágeis lâmpadas penduradas no teto ou pelas cortinas amareladas que tapavam as janelas, pareciam ocultar um tesouro perdido, de que uma ínfima parte se vislumbrava por entre os cânticos que ecoavam pelos corredores; eram os monges que recitavam os textos sagrados. Apenas o som de sinos a badalarem à distância quebrou o murmúrio ondulado da suave declamação dos mantras, o ooooooom primordial a reverberar pelo palácio como um rumorejo dos deuses. O ar apresentava-se impregnado com o odor forte a manteiga de iaque, o desagradável aroma rançoso misturado com o delicioso cheiro a incenso. Lá fora, o sopro do vento deve ter aberto uma nesga no manto de nuvens que toldava o céu, porque raios quentes de sol brotaram nesse instante por entre os reposteiros fulvos e invadiram o interior do palácio, projectando bizarros focos de luz nos cantos ensombrados, o fio violáceo e branco do fumo do incenso erguendo-se como espíritos fugidios que se esfumavam no ar.