Выбрать главу

Um monge jovem, calvo e coberto por um manto rubro, apareceu no corredor e logo Tomás o interpelou.

"Tashi deleh", cumprimentou o estrangeiro.

"Tashi deleb", respondeu o monge, fazendo uma vénia curta.

Tomás esboçou uma expressão interrogativa.

"Arya Lokeshvara?"

O tibetano fez sinal para Tomás o seguir. Subiram ao Palácio Vermelho e calcorrearam os corredores pintados de laranja; entraram nas arcadas superiores, sustentadas por pilares cobertos por panos vermelhos e protegidas por uma varanda que dava para os telhados dourados. Após contornar duas esquinas, o monge apontou para uma pequena capela escondida num canto do palácio, as escadarias da entrada iluminadas por uma surpreendente nesga de sol que se abria no teto.

"Kale shu", despediu-se o jovem monge, antes de desaparecer.

A pequena capela Arya Lokeshvara, embora apertada, era alta e apresentava-se cheia de estátuas. Uma neblina de incenso enchia o ar à luz amarelada das velas de manteiga de iaque e apenas um monge se encontrava lá dentro, sentado em meditação, o corpo voltado para as estátuas contidas numa vitrina, diante das íngremes escadinhas de entrada. Tomás olhou em redor, para as arcadas, e procurou sinais de alguém à sua espera, teve mesmo a esperança de ser interpelado por uma pessoa escondida na sombra e que se identificasse como sendo Tenzing Thubten. Mas ninguém apareceu. Permaneceu ali longos minutos, parado, mirando a luz 214

tremelicante das velas, sentindo o cheiro de manteiga e incenso, ouvindo os mantras recitados por vozes longínquas.

Ao fim de vinte minutos começou a sentir-se inquieto, a mente assaltada por angustiadas dúvidas. Teriam os monges considerado suspeito o seu inquérito? Será que tinha sido tão desastrado que afugentara a caça? O que faria se todas as portas se lhe fechassem? Como poderia retomar a investigação?

"Kbyerang kusu depo yinpe?"

Tomás estremeceu e olhou na direção de onde tinha vindo a voz. Era o monge que se encontrava sentado dentro da capela, as costas voltadas para si.

"Perdão?"

"Perguntei-lhe se o seu corpo se encontra bem. É a nossa maneira de cumprimentar um amigo."

Tomás subiu hesitantemente as escadinhas, entrou na capela, contornou o tibetano e reconheceu o monge com quem falara na véspera no templo de Jokhang.

"Jinpa Khadroma?"

O monge gordo virou o rosto, mirou-o e sorriu com bonomia, parecia um Buda vivo.

"Surpreendido por me ver?"

"Bem... enfim... não...", titubeou Tomás. "Quer dizer, sim. Não deveria ser Tenzing Thubten a estar aqui?"

Jinpa abanou a cabeça.

"O Tenzing não pode vir ter consigo. Estivemos a verificar as suas credenciais, no entanto, e parece-nos que não há problemas em possibilitar um encontro. Mas terá de ser você a ir ter com ele."

"Tudo bem", assentiu o historiador. "Diga-me onde."

O monge voltou a cabeça para a frente, fechou os olhos e respirou fundo.

"O senhor é um homem religioso, professor Noronha?"

Tomás observou-o, um pouco frustrado por Jinpa não lhe dizer imediatamente onde poderia encontrar o homem que procurava. Mas tinha consciência de que os ritmos eram aqui diferentes e deixou-se guiar pela pergunta do monge.

"Nem por isso."

"Não acredita na existência de algo que nos transcende?"

"Bem... talvez, não sei. Digamos que estou à procura."

"O que procura?"

"A verdade, suponho eu."

"Julguei que procurava Tenzing."

Tomás riu-se.

"Também", disse. "Talvez ele saiba a verdade."

Jinpa voltou a respirar fundo.

215

"Esta capela é a mais sagrada das capelas do Potala. Remonta a um palácio que aqui foi construído no século VII, sobre o qual o Potala foi erguido." Pausa. "O senhor não sente aqui a presença de Dbarmakaya?”

"Quem?"

Com os olhos fechados e a pose estática, o monge parecia mergulhado em meditação.

"O que sabe o senhor sobre o budismo?"

"Nada."

Fez-se mais um silêncio, apenas quebrado pelos cânticos longínquos das recitações dos textos sagrados.

"Há mais de dois mil e quinhentos anos nasceu no Nepal um homem chamado Siddharta Gautama, um príncipe pertencente a uma casta nobre e que vivia num palácio. Ao constatar, porém, que para lá do palácio a vida era feita de sofrimento, Siddharta abandonou tudo e foi para a Índia viver numa floresta como um asceta, dilacerado por uma pergunta: para quê viver quando tudo é dor? Durante sete anos deambulou pela floresta em busca da resposta a essa pergunta. Cinco ascetas convenceram-no a jejuar, por acreditarem que a renúncia às necessidades do corpo criaria a energia espiritual que os conduziria à iluminação.

Siddharta jejuou tanto que ficou esquelético e o umbigo tocou-lhe na coluna vertebral.

No final, constatou que o esforço de nada servira e concluiu que o corpo necessita de energia para alimentar a mente na sua busca. Decidiu, por isso, abandonar os caminhos extremos. Para ele, o verdadeiro caminho não era o da luxúria dos palácios nem o da mortificação dos ascetas, onde se encontram os dois extremos. Escolheu antes o caminho do meio, o do equilíbrio. Um dia, após banhar-se no rio e comer um arroz-doce, sentou-se em meditação debaixo de uma figueira, uma Árvore da Iluminação a que chamamos Bodhi, e jurou que não sairia dali enquanto não atingisse a iluminação. Após quarenta e nove dias de meditação, chegou a noite em que alcançou finalmente a clarificação

final de todas as suas dúvidas. Ele despertou por completo. Siddharta tornou-se Buda, o Iluminado."

"Mas ele despertou de quê?"

"Despertou do sonho da vida." Jinpa abriu os olhos, como se também ele tivesse acordado. "Enfim iluminado, o Buda expressou o caminho para o despertar através das Quatro Nobres Verdades. A Primeira é a constatação de que a condição humana é sofrimento. Esse sofrimento

emerge da Segunda Nobre Verdade, que é a nossa dificuldade em encarar um fato básico da vida, o de que tudo é transitório. Todas as coisas nascem e morrem, disse o Buda. Nós sofremos porque nos agarramos ao sonho da vida, às ilusões dos sentidos, à fantasia de que é possível manter tudo como está, e não aceitamos que o mundo é um rio que passa. É esse o nosso karma. Vivemos na convicção de que somos seres individuais, quando na verdade fazemos parte de um todo indivisível."

"E é possível romper essa... uh... ilusão?"

"Sim. A Terceira Nobre Verdade estabelece justamente que é possível quebrar o ciclo do sofrimento, é possível libertarmo-nos do karma e atingir um estado de total libertação, de iluminação, de despertar. O nirvana. É aqui que a ilusão da individualidade se desfaz e nasce a constatação de que tudo é uno e que nós fazemos parte do uno." Suspirou. "A Quarta Nobre Verdade é o óctuplo caminho sagrado 216

destinado à supressão da dor, à fusão com o uno e à elevação ao nirvana. É o caminho para nos tornarmos Buda."