"E qual é esse caminho?", quis saber Tomás.
Jinpa voltou a fechar os olhos, como se regressasse à meditação.
"É o caminho de Shigatse", limitou-se a dizer.
"Como?"
"É o caminho de Shigatse."
"Shigatse?"
"Em Shigatse existe um pequeno hotel. Dirija-se a ele e diga que deseja que o bodbisattva Tenzing Thubten lhe mostre o caminho."
Tomás ficou um instante paralisado, atordoado com a forma súbita e inesperada como o monge mudara o rumo da conversa e regressara ao ponto inicial. Logo reagiu, porém; tirou o bloco de notas e rabiscou as instruções.
"Que Tenzing... me mostre... o caminho", soletrou enquanto escrevinhava com a língua presa no canto da boca.
"Não escreva." Jinpa tocou com o dedo na cabeça. "Memorize."
O visitante mostrou-se de novo momentaneamente desconcertado com a ordem, mas, obediente, acabou por arrancar a folha do bloco, amarrotá-la e atirá-la para um cesto.
"Hmm...", murmurou, esforçando-se por decorar os pormenores. "Shigatse, é?"
"Sim."
"E o que faço lá?"
"Vá para o hotel."
"Qual hotel?"
"O Gang Gyal Utsi."
"Como? Gang quê?"
"Gang Gyal Utsi. Mas os ocidentais dão-lhe outro nome."
"Outro nome?"
"Hotel Orchard."
Desceu infindáveis degraus inclinados a pique, por longas escadarias mal iluminadas rasgadas no edifício como poços sombrios, passou pelo grande salão onde se encontrava o trono do sexto Dalai-Lama e, ignorando as estátuas e as capelas que ornavam o local, abandonou apressadamente o Potala.
Tomás era um homem com uma missão. Trazia memorizado o ponto de encontro para a conversa com o tibetano que, acreditava, o poderia elucidar sobre os mistérios em torno do desaparecimento do professor Siza e do segredo que envolvia o velho manuscrito de Einstein. Sentia-se à beira de deslindar o enigma e mal conseguia reprimir a excitação que lhe fervia no corpo e lhe revigorava a alma. Desceu com imprudente pressa por um trilho de terra até à Bei Jin Guilan, a cabeça inclinada para a frente, os olhos fixos no chão, a mente a vaguear pelas perspectivas que se lhe abriam, completamente alheio ao mundo a pulsar em redor de si.
217
Não se apercebeu, por isso, de uma carrinha negra que parou ao lado do passeio, nem viu os dois homens saltarem do interior e dirigirem-se a si com furtiva intenção.
Um movimento brusco trouxe-o de volta à realidade.
"Mas o que..."
Alguém lhe torceu brutalmente o braço, forçando-o a dobrar o corpo e a soltar um urro de dor.
"Entre aqui", ordenou uma voz desconhecida num inglês com forte sotaque estranho.
Atarantado, sem perceber o que se passava, quase como se vivesse um sonho irreal, viu a porta da carrinha abrir-se e sentiu-se voar para o seu interior.
"Larguem-me! O que é isto? Larguem-me!"
Recebeu uma pancada na nuca e viu tudo escuro. A imagem seguinte que registou foi a do seu nariz comprimir-se contra o banco traseiro da viatura, os solavancos e o som do motor em aceleração a indicarem-lhe que se encontrava na carrinha e que era levado por desconhecidos.
"Então?", perguntou uma voz. "Está calmo?"
Deitado de barriga para baixo no banco, os braços algemados atrás das costas, Tomás voltou a cabeça e viu um homem de bigode preto a sorrir-lhe ao lado. Tinha ar de ser proveniente do Médio Oriente, a tez levemente morena.
"O que é isto? Para onde me levam?"
O homem manteve o sorriso.
"Calma. Já vai descobrir."
"Quem é você?"
O desconhecido inclinou-se para Tomás.
"Não se lembra de mim?"
O historiador tentou destrinçar traços familiares naquele rosto, mas nada registou.
"Não."
O homem soltou uma gargalhada.
"É natural", exclamou. "Quando falamos, você tinha os olhos vendados. Mas não reconhece a minha voz?"
Tomás arregalou os olhos. Não havia dúvida, concluiu agora, horrorizado. Aquele desconhecido era um iraniano. E dos menos simpáticos.
"Não."
"O meu nome é Salman Kazemi e sou coronel do VEVAK, o Ministério das Informações e Segurança da República Islâmica do Irão", apresentou-se. "Se bem se recorda, tivemos uma vez uma conversa bem animada na cadeia de Evin. Lembra-se?"
Tomás lembrava-se. Era o interrogador da polícia secreta, aquele que o esbofeteara e que lhe apagara um cigarro no pescoço.
"O que está você aqui a fazer?"
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"Vim à sua procura."
"Mas o que me quer você?"
Kazemi abriu as mãos grossas.
"O mesmo de sempre."
"O quê? Não me diga que está aqui porque ainda quer saber o que fazia eu no Ministério da Ciência à noite?"
O coronel soltou uma gargalhada.
"Isso já nós percebemos há muito tempo, caro professor. Você pensa que somos parvos ou
quê?"
"Então o que quer saber?"
"O mesmo de sempre, já lhe disse."
"O quê?"
"Queremos saber o segredo do manuscrito de Einstein."
Vencendo o medo, Tomás conseguiu esboçar um esgar de desprezo.
"Você não tem capacidade intelectual para perceber esse segredo. O que aquele documento revela está para além da sua compreensão."
Kazemi sorriu de novo.
"Talvez você tenha razão", admitiu. "Mas existe entre nós quem esteja habilitado a perceber tudo."
"Entre vocês? Duvido."
Tomás viu o coronel fazer um sinal para a frente e, pela primeira vez, percebeu que, para além do condutor, havia uma outra pessoa sentada no banco dianteiro.
Focou a atenção nessa pessoa e reconheceu, surpreendido, os cabelos negros, as linhas delicadas no rosto, os lábios sensuais, os olhos melados que o fitavam com uma indisfarçável e irreprimível ponta de tristeza.
"Ariana."
XXX
O quarto revelou-se escuro e frio, com apenas uma pequenina janela gradeada no topo, tapada por um vidro grosso e fosco. Era por aquela estreita abertura que entrava toda a luz que iluminava o pequeno compartimento. Do tecto pendia uma lâmpada, como uma lágrima presa por um fio, mas Tomás ainda não a vira acesa e suspeitava que só à noite lhe enxergaria o bruxulear amarelado.
Chamar quarto àquele rudimentar espaço talvez fosse excesso de tolerância. Era, sem dúvida, uma cave, e, nas circunstâncias actuais, talvez a expressão mais adequada para descrever o local fosse a palavra cela. Tomás encontrava-se encerrado numa cela improvisada. Havia uma colorida manta tibetana estendida no chão de pedra fria, um balde para fazer as necessidades e um jarro de água.
Nada mais.
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A verdade, porém, é que o conforto estava longe de ser a principal das preocupações de Tomás naquele momento. A questão central resumia-se à constatação de que fora de novo feito prisioneiro. Sentou-se de cócoras sobre a manta e fez um ponto da situação. Os seus carcereiros eram os iranianos; procuravam desvendar o segredo encerrado no manuscrito de Einstein; e, como se fosse a cereja podre em cima daquele bolo da desgraça, Ariana estava do lado deles.
Custava-lhe a acreditar, mas vira o que vira, vira Ariana com o coronel iraniano, vira-a no carro onde fora sequestrado, vira-a participar naquele acto. Como era possível tal coisa? Ariana contra si? A dúvida martelou-o sem cessar. Será que sempre estivera contra si? Será que o enganara o tempo todo? Que tolo! Tolo, tolo, tolo. Mas, questionou-se, qual o objectivo do exercício? Para quê todo o teatro encenado em Teerã? Não, pensou, abanando a cabeça. Não pode ser. Ariana não pode ser dúplice a este ponto. Isso era de mais. Não. Tem de haver outra explicação. Procurou alternativas, buscou justificações, tentou um novo caminho. Será, interrogou-se quase timidamente, será que alguém a forçara? Será que ela foi apanhada a ajudá-lo e a sua vida também corria agora perigo? Mas, se corria perigo e estava sob ameaça do regime, por que razão a deixaram vir até ao Tibete?