Permaneceu horas ali fechado, sozinho, entregue às suas perplexidades, procurando encontrar uma explicação para o inexplicável, uma justificação para o insuportável, uma saída para o inaceitável. Mas o amargo sabor da traição não o largava, era como um fantasma a assombrar-lhe cada pensamento, uma mancha que lhe matizava os sentimentos, uma dúvida que o inquietava para além do que podia tolerar.
Passos.
O som de passos a aproximarem-se interrompeu-lhe o angustiado fio do pensamento. Vinha aí alguém. Susteve a respiração e aguçou a atenção. Ouviu vozes a acompanharem esses passos, depois os passos pararam e escutou o som metálico de uma chave a entrar na fechadura da porta do quarto.
Clique, dique.
Claque.
A porta abriu-se e o vulto corpulento do coronel Kazemi invadiu o pequeno compartimento. Trazia um banco na mão e atrás vinha mais gente. Tomás esticou a cabeça e identificou Ariana.
"Então como vai o nosso professor?", perguntou o oficial do VEVAK com ar jovial.
"Pronto para falar?"
Kazemi deixou Ariana passar e trancou a porta atrás de si. Depois pousou o banco no chão e sentou-se, mirando Tomás. O recluso erguera-se sobre o tapete tibetano, os olhos dançando com desconfiança entre os dois iranianos.
"O que me querem vocês?"
"Você sabe...", sorriu Kazemi com ar condescendente.
Tomás ignorou-o e fitou Ariana com uma expressão zangada, acusadora.
"Como é que você me pôde fazer isto?"
A iraniana fugiu com os olhos, pregando-os ao chão.
"A doutora Pakravan não tem justificações a dar-lhe", rosnou Kazemi. "Vamos ao que interessa."
"Fale", insistiu Tomás, sempre fixado em Ariana. "O que se passa aqui?"
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O coronel ergueu o dedo.
"Estou a avisá-lo, professor", vociferou, a voz ameaçadora. "A doutora Pakravan não tem explicações a dar-lhe. O senhor é que tem explicações a dar-nos."
Tomás não deu sinais de ter escutado o homem do VEVAK e manteve a atenção virada para a iraniana.
"Diga-me que não foi tudo mentira. Diga-me qualquer coisa."
Kazemi ergueu-se bruscamente do banco, pegou Tomás pelo colarinho e levantou a mão direita, preparando-se para o esbofetear.
"Cale-se, idiota!", ladrou.
Ariana gritou qualquer coisa em parsi e o coronel susteve a mão no ar. Largou Tomás com relutância e regressou ao banco, uma expressão de despeito desenhada no rosto.
"Então?", insistiu o prisioneiro, ainda em tom de desafio. "Como se explica tudo isto?"
Ariana manteve-se por instantes calada, mas logo mirou o coronel e falou com ele novamente em parsi. Após uma ininteligível troca de palavras, Kazemi fez um gesto irritado e voltou-se para Tomás.
"O que quer você saber?"
"Quero saber qual o envolvimento de... da doutora Pakravan nesta história."
O oficial do VEVAK sorriu sem humor.
"Pobre coitado", disse. "Você acha mesmo que é possível fugir de Evin com essa facilidade toda?"
"O que quer você dizer com isso?"
"O que eu quero dizer é que não foi você que conseguiu fugir, ouviu? Fomos nós que o
deixamos escapar."
"Como assim?"
"A transferência de Evin para a Prisão 59 não foi senão um pretexto para possibilitar a sua fuga."
Tomás mirou Ariana, acreditando e não querendo acreditar.
"Isso é verdade?"
O silêncio da iraniana foi eloquente.
"Foi a doutora Pakravan quem planejou tudo", revelou o coronel, como se falasse por ela. "A sua transferência, o teatro no meio da rua para o convencer de que estava a ser resgatado, tudo."
O recluso manteve o olhar preso em Ariana, atordoado.
"Foi então tudo uma encenação..."
"Tudo", repetiu Kazemi. "Ou você pensa que é normal um preso escapar-se com toda aquela facilidade das nossas mãos, uh?" Sorriu com uma expressão sarcástica.
"Se você fugiu, foi porque nós queríamos que você fugisse. Entendeu?"
Tomás mostrava-se perplexo, os olhos agora saltitando entre os dois iranianos.
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"Mas... com que objetivo? Para quê isso tudo?"
O coronel suspirou.
"Ora, para quê?", perguntou com desprezo. "Porque tínhamos pressa, claro.
Porque queríamos que você nos conduzisse ao segredo sem mais perda de tempo."
Acomodou-se no banco. "Não tenha dúvidas de que você cantaria como um canário se o puséssemos no Prisão 59."
"Então por que não me mantiveram lá?"
"Porque não somos parvos. Se você foi apanhado à noite no Ministério da Ciência a roubar um manuscrito relacionado com o nosso programa nuclear, era evidente para toda a gente que não fez isso porque lhe apeteceu. Você estava a mando da CIA ou de qualquer outra organização americana. E, se estava envolvido com a CIA, é claro como água que a última coisa que iria confessar era esse fato." Encolheu os ombros. "Quer dizer, você acabaria por confessar, é evidente. Mas poderia levar meses. E nós não temos meses."
"E então?"
"E então? E então a doutora Pakravan apresentou a sugestão que resolveu o problema.
Deixamo-lo fugir e, depois, era uma questão de lhe seguir os passos. Entendeu?"
Tomás voltou a mirar Ariana.
"Portanto, não passou tudo de uma encenação."
"Hollywood", disse Kazemi. "E do melhor. Mantivemo-lo sob vigilância e, depois, foi só uma questão de o seguir e ver para onde nos levaria."
"Mas o que vos levou a prever que eu continuaria a busca? Afinal de contas, o manuscrito estava em Teerã."
O coronel riu-se.
"Caro professor, o senhor não me entendeu bem. É evidente que você não iria procurar o documento. O que você iria procurar eram pormenores sobre as investigações do professor Siza."
"Ah!", exclamou Tomás. "O professor Siza. O que fizeram vocês dele?"
Kazemi tossiu.
"Bem... uh... houve um pequeno acidente."
"Como assim, um pequeno acidente?"
"O professor Siza foi nosso convidado para visitar Teerã."
"Convidado? Vocês têm por costume entrar à bruta em casa dos vossos convidados e escancararem-lhes o escritório?"
O oficial sorriu.
"Digamos que o professor Siza precisou de ser um pouco... enfim... um pouco...
convencido a vir visitar-nos."
"E o que lhe aconteceu?"
"Bem, se calhar é melhor começarmos pelo princípio", disse Kazemi. "No ano passado, um dos nossos cientistas, um tipo que trabalha na central de Natanz, regressou de uma conferência de físicos em Paris com uma informação muito interessante. Ele disse-nos ter escutado uma conversa entre outros físicos, um dos 222
quais confidenciou possuir um manuscrito desconhecido com a fórmula da maior explosão jamais vista e que estava a ultimar investigações que completariam as descobertas contidas nesse documento. O nosso homem apurou o nome do cientista que segredava estas coisas. Era um tal professor Augusto Siza, da Universidade de Coimbra."
"Foi assim que souberam da existência de A Fórmula de Deus.”
"Sim. Ao tomar conhecimento disto, e depois de algumas hesitações, montamos uma operação para nos apossarmos desse segredo. Como sabe, ao longo deste ano tem havido uma grande pressão internacional sobre o nosso programa nuclear, com ameaças veladas de sanções, bombardeamentos e tudo o mais que se possa imaginar.