Sullivan soltou uma gargalhada.
"Damn! Estava com esperança de que você se esquecesse."
"Muito esperto, sim senhor. Então? Essa pista?"
"É confidencial, entendeu?"
"Sim, sim, está bem. Desembuche."
"Okay", assentiu o americano. Respirou fundo. "Então aqui vai a pista."
"Diga lá."
"Tomás, você já alguma vez ouviu falar da CIA?"
O historiador pensou ter ouvido mal.
24
"O quê?"
"Falamos às quatro. See you."
E desligou.
O relógio na parede assinalava o meio-dia e cinquenta quando alguém bateu à porta do gabinete. A maçaneta rodou e Tomás viu espreitar pela entrada um rosto familiar, era uma mulher de cabelos loiros encaracolados e grandes óculos sobre os olhos verdes cristalinos, os mesmos olhos que ele herdara.
"Posso?"
"Mãe", exclamou o historiador, erguendo-se. "Tudo bem?"
"Meu querido filhinho", disse ela, abraçando-o e beijando-o com fervor. "Como estás tu?"
Uma tosse cavada atrás dela revelou uma segunda figura.
"Olá, pai", cumprimentou Tomás, estendendo a mão com cerimônia.
"Então, rapaz? Como vai isso?"
Apertaram as mãos, algo desajeitados um diante do outro, como sempre acontecia quando se encontravam.
"Está tudo bem", disse Tomás.
"Quando é que arranjas uma mulher que trate de ti?", perguntou a mãe. "Já tens quarenta e dois anos e precisas de reconstituir a tua vida, filho."
"Ah, estou a pensar nisso."
"Tens de nos dar netinhos."
"Está bem, está bem."
"Não há hipóteses de tu e a Constança... enfim... vocês..."
"Não, não há", cortou Tomás. Olhou para o relógio, esforçando-se por mudar de conversa. "Vamos comer?"
A mãe hesitou.
"Uh... está bem, mas... mas é melhor, primeiro, conversarmos um pouco."
"Conversamos no restaurante." Esboçou um sinal com a cabeça. "Vamos. Eu já marquei a mesa e...”
"Temos de conversar aqui", interrompeu ela.
"Aqui?", estranhou o filho. "Mas por quê?"
“Porque precisamos de falar a sós, filho. Sem estranhos à volta."
Tomás fez uma expressão intrigada e fechou devagar a porta do gabinete. Puxou duas cadeiras, onde os pais se sentaram, e voltou para o seu lugar, por detrás da secretária.
"Então?", perguntou, olhando-os interrogativamente. "O que se passa?"
Os pais pareciam atrapalhados. A mãe olhou para o marido, indecisa, como se lhe pedisse para falar. Mas ele nada disse, o que a levou a tomar a iniciativa de o forçar.
"O teu pai tem uma coisa para te contar. "Voltou a olhar para o marido.
25
“Não é, Manel?"
O pai endireitou-se na cadeira e tossiu.
"Estou preocupado porque desapareceu um colega meu", disse, visivelmente pouco à vontade. "O Augusto..."
"Manel", cortou a mulher. "Não comeces a divagar."
"Não estou a divagar. O desaparecimento do Augusto deixou-me preocupado, o que queres?"
"Não viemos aqui para falar do Augusto."
Tomás olhou para um e para o outro.
"Quem é o Augusto?"
A mãe rolou os olhos, contrariada.
"É o professor Augusto Siza, um colega do teu pai lá na faculdade. Leciona física e desapareceu há duas semanas."
"Ah, sim?"
"Ó filho, esta história não interessa para nada. Nós viemos aqui por outro motivo." Mirou o marido. "Não é, Manel?"
Manuel Noronha baixou a cabeça e inspeccionou as unhas, já amareladas por tantos anos a dedilhar o tabaco. Sentado por detrás da sua secretária, Tomás analisou o pai. Mostrava-se quase careca, apenas resistiam à calvície uns cabelos brancos colados às orelhas e na nuca; as sobrancelhas, espessas e rebeldes, tornaram-se grisalhas e o rosto era chupado, talvez de mais, com os malares muito salientes, quase escondendo os pequenos olhos castanho-claros; e múltiplas rugas cortavam-lhe a face como cicatrizes. Vendo bem, o pai estava a ficar velho; velho e magro, com um corpo franzino e seco, quase lhe restavam só pele e ossos. TInha setenta anos e a idade começava a pesar-lhe, era incrível que ainda desse aulas de matemática na Universidade de Coimbra. Só a sua lucidez e brilhantismo o permitiam, mas teve ainda de obter uma autorização especial do reitor; caso contrário, há muito que estaria em casa a definhar.
"Manel", insistiu a mulher. ' Anda, vá lá. Olha que, se não contas tu, conto eu."
"Mas contar o quê?", perguntou Tomás, intrigado com todo aquele mistério.
"Eu conto", disse o pai.
O professor de matemática não era uma pessoa faladora. O filho habituou-se a vê-Io, ao longo dos anos, como uma figura distante, um homem silencioso, sempre de cigarro na mão, fechado no escritório do sótão, agarrado a um lápis ou a um giz, escondido da vida, uma espécie de eremita da abstração; o seu mundo eram as teorias de Cantor, a geometria de Euclides, os teoremas de Fermat e Gödel, os fractais de Mandelbrot, os sistemas de Lorenz, o império dos números. Vivia por entre uma nuvem de fumo de equações e tabaco, mergulhado num universo irreal, longe dos homens, em reclusão ascética, quase ignorando a família; era um escravo da nicotina e dos algarismos e das fórmulas e das funções e das teorias de conjunto e das probabilidades e da simetria e do pi e do fi e de tudo o que dizia respeito a tudo. A tudo.
Exceto à vida.
"Fui ao médico", anunciou Manuel Noronha, como se aquilo fosse tudo o que tinha a dizer.
26
Fez-se silêncio.
"Sim?", encorajou o filho.
O velho professor, percebendo que dele se esperava que continuasse a falar, remexeu-se na cadeira.
"Comecei a tossir há já algum tempo, faz dois ou três anos." Tossiu duas vezes, como que a exemplificar. "Primeiro achei que era constipação, depois alergia. O
problema é que a tosse se agravou e eu fui perdendo o apetite. Emagreci e passei a sentir-me fraco. O Augusto tinha-me, nessa altura, pedido para confirmar umas equações e eu atribuí esse cansaço e esse emagrecimento ao excesso de trabalho." Pôs a mão no peito. "Depois comecei a assobiar enquanto respirava." Respirou fundo, deixando ouvir-se um sibilo que Ihe crescia do tórax. "A tua mãe mandou-me ir ao médico ver o que era, mas não liguei. Vieram-me então umas dores de cabeça muito fortes e umas dores nos ossos. Achei que era do trabalho, mas a tua mãe fartou-se de me zurzir os ouvidos e lá marcou consulta no doutor Gouveia."
"O teu pai parece um bicho-do-mato, sabes como ele é", observou a mãe. "Quase que tive de o arrastar até à clínica."
Tomás permaneceu calado. Não estava a gostar do rumo que a conversa tomava, antecipou-lhe a conclusão lógica e percebeu que o pai devia ter um problema de saúde.
"O doutor Gouveia mandou-me fazer uns exames", disse Manuel Noronha. "Tirei sangue e fiz umas radiografias. O médico viu os resultados e mandou-me efetuar também um TAC. Depois chamou-nos ao gabinete, a mim e à tua mãe, e revelou ter detectado umas manchas nos pulmões e um aumento dos gânglios linfáticos. Disse que era preciso fazer-me ainda uma biópsia, para examinar uma amostra ao microscópio e ver o que aquilo era. Marcaram-me uma broncoscopia, destinada a extrair-me um fragmento do tecido pulmonar."
"Puf!", desabafou a mãe, com o seu característico rolar de olhos. "A broncoscopia foi uma tourada."
"Então não havia de ser?", perguntou o pai, lançando-lhe um olhar ressentido.
"Queria-te ver no meu lugar, hã? Havia de ser bonito." Mirou o filho, como se procurasse um aliado. "Eles meteram-me um tubinho pelo nariz e o tubinho desceu pela garganta até aos pulmões." Indicou com o dedo todo o trajeto da sonda. "Tive imensa dificuldade em respirar durante este exame, foi uma coisa horrível." .