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"Se assim foi, por que não se limitaram a abrir a porta da cadeia e a deixarem-me sair de forma legal? Para quê toda aquela cena no meio da rua, a fingir que me salvavam?"

"Porque a CIA perceberia logo que tínhamos uma jogada fisgada. Então apanhávamo-lo no ministério à noite com um documento daqueles na mão e um agente da CIA ao lado aos tiros e, dias depois, deixávamo-lo ir embora? Abríamos-lhe a porta da cadeia assim sem mais nem menos? Não acha que a CIA consideraria esse nosso comportamento suspeito?" Abanou a cabeça, completando o diálogo entre si mesma. "E evidente que não o podíamos libertar assim do pé para a mão, não é?

Tinha de ser uma fuga. Só podia ser uma fuga. E teria de ser uma fuga credível."

"Estou a perceber", assentiu Tomás. "Mas por que não me disse nada?"

"Porque não podia! Porque, quando me encontrava consigo, também eu estava a ser vigiada, o que pensa você? Além do mais, era importante que você agisse de uma forma natural. Se eu alguma vez lhe revelasse o que quer que fosse, punha tudo em risco."

O historiador passou a mão pelo cabelo.

"Estou a entender", disse. "E agora, depois de me ter tirado daquele buraco aqui em Lhasa? Não está você também em risco?"

"Claro que estou."

"Então... por que o fez?"

Ariana levou algum tempo a responder. Ficou um longo instante calada, os olhos presos na estrada.

"Porque não podia deixar que o matassem", murmurou por fim.

"Mas, ouça... agora é você que... que também pode morrer."

"Não, se conseguirmos provar que o manuscrito nada tem a ver com armas atômicas."

"E se não conseguirmos provar isso?"

A iraniana fitou-o com os olhos a brilhar, uma expressão triste a ensombrar-lhe o rosto bonito.

"Então morreremos os dois, receio bem."

Fazia uma fornalha infernal dentro do jipe. O sol raiava alto e o calor que irradiava tinha tal intensidade que aquecia o interior da viatura para além do suportável, escaldava de tal modo que tiveram de baixar os vidros e sentir o vento fresco secar-lhes o suor. O jipe atingiu um desfiladeiro e percorreu o trilho aos solavancos, cruzando um vale coberto por um mar de seixos e libertando uma vigorosa nuvem de poeira no encalço.

Com o rosto a enfrentar o vento retemperador, Tomás admirou o espectáculo sereno da natureza a adaptar-se àquelas paragens. A paisagem tibetana, percebeu ele, tinha a intensidade nua da claridade e da força bruta das cores. Aqui os vermelhos eram mais enérgicos, os verdes mais fortes, os amarelos mais dourados, as cores irradiavam tal luminosidade que pareciam brilhar por entre as montanhas, quase 232

rebentavam numa explosão cromática, berrante até, tão vivas e excessivas que chegavam a entorpecer os sentidos.

Foi então que o viram. Uma mancha azul radiante relampejou à direita. Era uma jóia polida, um espelho anil brilhante cravado na terra dourada, uma cintilante safira cerúlea embutida num quadro de ouro fúlgido. A luz que emitia era tão intensamente azul que parecia iluminada por dentro, alumiava um brilho vigoroso, quase hipnótico.

"O que é aquilo?", perguntou Tomás, sem tirar os olhos daquela visão magnetizante.

Ariana também já se tinha apercebido da presença da mancha resplandecente e contemplava-a fascinada.

"É um lago."

Um lago.

Pararam o jipe e deixaram-se extasiar por aquele banho de azul que lhes inundava os sentidos.

O lago parecia um espelho iluminado, era lápis-lazúli polido a vários tons, mar intenso lá ao fundo, azul-cobalto flamante mais próximo, verde-opal junto à margem, as águas a beijarem na praia uma areia branca brilhante; dava a impressão de um atol miraculosamente pousado no meio de uma cordilheira dourada e púrpura, as montanhas exibindo picos lácteos cintilantes e projectando sombras de um opaco vermelho-acastanhado. Uma orgia de cores.

"Aquilo não pode ser água", comentou Tomás, dominado pela exuberância da visão. "Não assim tão brilhante."

"Então o que é?"

Era uma pergunta retórica, claro, uma vez que ambos sabiam muito bem que o lago, apesar da sua surpreendente cor luzidia, só podia mesmo ser de água.

"Não tem fome?", perguntou ele.

Ariana desligou o motor, saiu do jipe e abriu a porta de trás, tirando uma cesta.

O meio-dia aproximava-se e aquele era o local perfeito para o almoço. Tomás ajudou-a com a cesta e desceram ambos a encosta da estrada, na direção do lago.

O sol batia forte, tão forte que escaldava a pele. Começaram por se sentar junto a uma rocha, nas margens do lago, onde a água se apresentava tão transparente que não se percebia o seu limite; mas o sol era tão violento que se mudaram para uma zona de sombra, no sopé da montanha. Logo que cruzaram a linha de sombra, porém, sentiram-se enregelar. O frio revelava-se aqui muito intenso. Mudaram-se de novo, agora para o ponto de fronteira entre sol e sombra, o tronco na sombra, as pernas ao sol. Tomás não queria acreditar na amplitude da temperatura, era pelo menos uma dezena de graus de diferença. As pernas ardiam-lhe de calor, o tronco tremia de frio.

Olharam um para o outro e riram-se.

"É o ar", observou Ariana, divertida.

"O que tem o ar?"

"E demasiado rarefeito", explicou ela. "Não consegue absorver o calor do sol nem filtrar a sua força. É por isso que está a acontecer isto." Inspirou o ar. "Quando eu era miúda e ia passear pelas montanhas Zargos, no Irão, às vezes sentia este efeito, mas não assim de forma tão radical. Já viu? O ar aqui é tão fraco que não retém o calor nem nos protege dos raios ultravioletas." Mirou a zona iluminada e fez uma careta. "Mal por mal, mais vale ficarmos aqui à sombra."

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Tomás colocou a cesta sobre uma rocha e ambos serviram-se da merenda, umas sanduíches em pão de forma e umas garrafas de sumo. Sentaram-se em cima dessa mesma rocha e ficaram a comer enquanto contemplavam a vista em redor. Era de cortar a respiração.

O céu revelava-se escuro e profundo, contrastando com a paisagem nua e exuberante na sua depravação de cores; misturavam-se os diversos tons de veludo azul e verde da água, as pedras vermelhas e douradas, as montanhas castanhas e brancas. Parecia que, aqui, a luminosidade obedecia a regras diferentes; era como se a fonte da luz não estivesse no céu, mas na terra, como se o arco-íris fosse fenómeno do chão, não do ar.

"Tenho frio", queixou-se Ariana.

Quase sem pensar, como se obedecesse a uma reação instintiva de macho protetor, Tomás aproximou-se dela, tirou o casaco e cobriu-a. Ao fazê-lo, encostou-lhe o corpo. Foi um movimento suave, inocente, destinado a aquecê-la com um pouco do seu calor, mas gerou algo de inesperado. Um toque mágico. Sentiu-lhe a pele macia, a respiração baixa a acelerar, o brando perfume a lavanda que lhe emanava dos cabelos.

Intuiu-lhe sobretudo a vontade de não se afastar e essa constatação desencadeou um turbilhão de sentimentos.

Olharam-se.

Os olhos verdes cristalinos tocaram nos dourados dela, era a água diante do mel, o frio perante o quente, o temperado a ansiar pelo doce. Viu-lhe os lábios grossos entreabrirem-se, convidativos, e inclinou-se devagar, aproximando-se daquelas pétalas escarlates, o corpo tremendo de antecipação.

Tocaram-se.

Provou o veludo quente e palpitante dos lábios de Ariana, mergulhou dentro dela e experimentou-lhe a língua molhada e ardente, era como se saboreasse um doce, um chocolate, um creme de caramelo. Primeiro beijaram-se com brandura, com infinita ternura, depois o beijo tornou-se guloso, era como se quisessem mais e mais, o toque tímido transformou-se num lamber sôfrego, o carinho passou a desejo, o amor tornou-se volúpia.