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"Ah, sim?"

"E é também o mosteiro que alberga o Panchen Lama."

"Quem é esse?"

"O Panchen Lama? É a segunda figura mais importante do budismo, só suplantada pelo Dalai-Lama. Acho que panchen significa grande mestre. Os chineses têm usado o Panchen Lama para desafiar a autoridade do Dalai-Lama, mas sem grande sucesso. Dizem que o Panchen Lama acaba sempre por virar antichinês."

O sol batia forte e o ar era seco. Um desagradável fedor a lixo e a urina pairava pelas ruas, mas, à vista do portão do mosteiro, o odor fétido foi substituído pelo aroma perfumado a incenso. Cruzaram a entrada e deram consigo num grande pátio com vista para todo o mosteiro; dali tornava-se claro que se encontravam diante de um gigantesco e esplêndido complexo, todo o perímetro cercado por um longo muro. Na base da elevação sobre a qual assentava Tashilhunpo aglomeravam-se edifícios brancos, claramente uma área residencial monástica, e em cima erguiam-se construções avermelhadas cobertas pelos vistosos telhados dourados.

Tomás e Ariana seguiram o monge, escalando uma tranquila ruela de pedra que ascendia pela encosta. O tibetano galgou rápido o chão inclinado, mas os dois visitantes depressa tiveram de parar, arfantes, à sombra de uma garbosa árvore yonboh. Shigatse ficava ainda mais alto do que Lhasa e o ar rarefeito da altitude escasseava-lhes nos pulmões.

"Fala inglês?", perguntou Tomás, dirigindo-se ao monge que o aguardava uns metros mais adiante, sorridente e expectante.

O tibetano aproximou-se.

"Um pouco."

"Vamos encontrar-nos com um bodhisattva", observou o historiador. Arfou um pouco, ainda a recuperar o fôlego. "O que é um bodhisattva exatamente?"

"É uma espécie de Buda."

"Uma espécie de Buda? O que quer dizer com isso?"

"É alguém que atingiu a iluminação mas saiu do nirvana para ajudar os outros seres humanos.

É um santo, um homem que recusou a salvação para si enquanto não se salvarem os outros."

O monge deu meia-volta e arrastou-os para o topo do complexo. Chegaram a um caminho que percorria lateralmente uma estrutura de edifícios avermelhados, e o tibetano virou à esquerda, subindo umas escadas de pedra preta e mergulhando num bloco rubro. Os visitantes foram atrás, sempre ofegantes, e penetraram no mesmo local; atravessaram um alpendre escuro e desembocaram num pátio tranquilo, onde monges se afadigavam em torno de uma vasilha de gordura gemada. Era o átrio do templo de Maitreya.

O tibetano fez-lhes sinal para entrarem num pequeno compartimento sombrio, à direita, apenas iluminado por velas e pela luz difusa que penetrava por uma discreta janelinha. Tudo ali tinha um ar austero, quase primitivo. Cheirava a uma mistura de manteiga de iaque e incenso, um odor que competia com o aroma doce e perfumado de uma nuvem cinzenta, era o fumo libertado pelo carvão que ardia num antiquado fogão 237

de ferro. A chama amarela do fogão lambia uma velha chaleira negra, lançando clarões quentes e tremelicantes sobre as sombras do cubículo, como se pulsasse de vida.

Os dois sentaram-se em bancos cobertos por tapetes thangka vermelhos e viram o monge pegar no bule pousado sobre o fogão, encher duas chávenas e estendê-las em direção a si.

“Cha she rognang."

Era chá de manteiga de iaque.

"Obrigado", disse Tomás, disfarçando um esgar de repulsa perante a perspectiva de ter de beber aquela mistela gordurosa. Olhou para Ariana. "Como é que se diz obrigado em tibetano?"

"Thu djitchi."

"Isso." Fez uma vênia na direção do monge. "Thu djitchi.'"

O monge sorriu e esboçou um gesto com as palmas das mãos, pedindo-lhes para aguardarem.

"Gong da", disse, antes de desaparecer.

Não se passaram sequer vinte minutos.

O monge que os viera acolher reapareceu na salinha, mas trazia alguém consigo.

Era um outro monge, muito magro e pequeno, dobrado pela idade, que caminhava com dificuldade, apoiado num cajado e com o ombro direito nu. O primeiro ajudou o mais velho a acomodar-se numa enorme almofada. Trocaram algumas palavras em tibetano, ao fim das quais o primeiro curvou-se numa vênia e retirou-se.

Fez-se silêncio.

Apenas se ouviam os pássaros a chilrear pelo pátio, lá fora, e o carvão a estalar suavemente no fogão de ferro. Tomás e Ariana observaram o recém-chegado, mirrado sobre a grande almofada. O velho monge ajeitou o pano do tasen púrpura que o cobria e endireitou-se; os olhos desfocaram-se e perderam-se num ponto infinito, como se se alheasse do mundo que o rodeava.

Silêncio.

O budista parecia ignorar a presença dos dois forasteiros. Talvez estivesse em meditação, talvez tivesse mergulhado num transe. Fosse como fosse, o ancião nada dizia, limitava-se apenas a permanecer ali. Tomás e Ariana entreolharam-se, baralhados e divertidos, sem saber se deveriam falar, se o tibetano entrara ali por engano, se aquele era algum costume local ou se porventura estaria cego. Por via das dúvidas mantiveram-se em silêncio e aguardaram o desenrolar dos acontecimentos.

O mutismo prolongou-se por dez tranquilos minutos.

O velho monge permanecia quieto, os olhos congelados, a respiração pausada; até que, sem que nada o parecesse justificar, estremeceu e ganhou vida.

"Eu sou o bodhisattva Tenzing Thubten", anunciou com uma voz afável. Falava um inglês surpreendentemente perfeito, com um acentuado sotaque britânico. "Ouvi dizer que me procuravam para vos mostrar o caminho."

Tomás quase suspirou de alívio. Ali estava enfim, diante de si, Tenzing Thubten, o remetente do enigmático postal que encontrara em casa do professor Siza. Era este talvez o homem que lhe podia dar as respostas que procurava, que lhe podia 238

solucionar os segredos levantados pela sua busca, ou, quem sabe, que lhe podia até acrescentar mais alguns enigmas aos muitos mistérios que já o apoquentavam.

"Eu sou Tomás Noronha, professor de História da Universidade Nova de Lisboa."

Fez um gesto em direcção a Ariana. "Esta é Ariana Pakravan, física nuclear no Ministério da Ciência, em Teerã." Curvou a cabeça. "Muito obrigado por nos receber.

Fizemos um longo caminho para aqui estar."

O monge curvou os lábios.

"Vieram-me ver para que eu vos ilumine?"

"Uh... de certo modo, sim."

"Serei um bom médico para os doentes e sofredores. Conduzirei ao caminho correcto aqueles que se extraviaram. Serei uma luz brilhante para os que estão na noite escura e farei com que os pobres e indigentes descubram tesouros escondidos", entoou. "Assim reza o Avatamsaka sutra." Ergueu a mão. "Bem-vindos a Shigatse, viajantes na noite escura."

"É nosso prazer estar aqui."

Tenzing apontou para Tomás.

"Você disse que é de Lisboa?"

"Sim."

"É português?"

"Sou."

"Hmm", murmurou. "Foram portugueses os primeiros ocidentais a chegar ao coração do Tibete."

"Perdão?", admirou-se Tomás.

"Eram dois padres jesuítas", disse Tenzing. "O padre Andrade e o padre Marques ouviram rumores da existência de uma seita cristã num vale perdido do Tibete.

Disfarçaram-se de peregrinos hindus, atravessaram a índia e chegaram a Tsaparang, uma fortaleza erguida no centro do reino Guge, no vale Garuda. Construíram uma igreja e estabeleceram o primeiro contacto entre o Ocidente e o Tibete."

"Quando foi isso?"

"Em 1624." Fez uma vénia. "Bem-vindo, peregrino português. Se não vens disfarçado de hindu, qual a igreja que nos trazes desta vez?"

Tomás sorriu.

"Não lhe trago nenhuma igreja. Apenas umas perguntas."

"Procuras o caminho?"

"Procuro o caminho de um homem chamado Augusto Siza."