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Tenzing reagiu com bonomia ao nome.

"O jesuíta."

"Não, não", disse Tomás, abanando a cabeça. "Ele não era jesuíta. Nem sequer religioso. Era professor de Física na Universidade de Coimbra."

"Eu chamava-lhe o jesuíta", disse Tenzing, como se nem tivesse escutado aquela retificação.

Riu-se. "Ele não gostava, claro. Mas eu não o fazia por mal. Chamava-lhe o jesuíta em homenagem aos seus antepassados que há quatrocentos anos vieram até 239

aqui, ao reino Guge. Mas era também uma piada, relacionada com o trabalho em que ambos andamos metidos."

"Qual trabalho?"

O bodhisattva baixou a cabeça.

"Não lhe posso dizer."

"Porquê?"

"Porque ficou acordado que seria ele a fazer o anúncio."

Tomás e Ariana entreolharam-se. O historiador respirou fundo e mirou o velho tibetano.

"Tenho uma má notícia para lhe dar", disse. "Receio bem que o professor Augusto Siza tenha falecido."

Tenzing permaneceu hirto.

"Era um bom amigo", suspirou, como se a informação não o chocasse. "Desejo-lhe felicidades para a nova vida."

"A nova vida?"

"Reencarnará lama, de certeza. Será um homem bom e sábio, respeitado por todos os que o vierem a conhecer." Ajeitou o manto púrpura que o cobria. "Muitos de nós somos acossados pela duhkha, pela frustração e pela dor que nos traz a vida, mantendo-nos agarrados às ilusões criadas pela maya. Mas tudo isso é avidya, é a ignorância acima da qual precisamos de nos erguer. Se o fizermos, libertar-nos-emos do karma que nos acorrenta." Fez uma pausa. "Eu e o jesuíta caminhamos juntos durante algum tempo, como companheiros de viagem que decidem descobrir-se um ao outro. Mas

depois chegámos a uma bifurcação, eu escolhi um caminho e ele escolheu outro.

Os nossos trilhos tornaram-se diferentes, é verdade, mas o destino permaneceu sempre o mesmo."

"E qual é esse destino?"

O bodhisattva respirou fundo. Cerrou os olhos, adoptando a postura de meditação. Era como se ponderasse o que fazer; como se elevasse a sua consciência até à sunyata, o grande vazio; como se fundisse o seu ser com a eterna Dhartnakaya e procurasse aí a resposta ao seu dilema. Poderia contar tudo ou deveria manter-se calado? Será que o espírito do seu velho amigo, o homem a quem chamava o jesuíta, viria em seu socorro para o guiar?

Abriu os olhos com a decisão tomada.

"Eu nasci em 1930 em Lhasa, filho de uma família nobre. O meu primeiro nome foi Dhargey Dolma, que significa o Progresso com a deusa Dolma dos Sete Olhos. Os meus pais deram-me este nome porque acreditavam que o desenvolvimento era o caminho do Tibete e que era preciso estar atento à mudança, estar atento com sete olhos. Quando eu tinha quatro anos, no entanto, mandaram-me para o mosteiro de Rongbuk, no sopé do Chomo-langma, a grande montanha a que nós chamamos Deusa Mãe do Universo." Fitou Tomás. "Vocês chamam-lhe Evereste." Retomou a pose anterior. "Tornei-me profundamente religioso quando tomei contacto com os monges de Rongbuk. A tradição budista estabelece que todas as coisas existem por causa de um nome e de um pensamento, nada existe por si. Em conformidade, mudei de nome para me tornar outra pessoa. Aos seis anos, passei a chamar-me Tenzing Thubten, ou 240

o Protector do Dharma que segue o Caminho do Buda. Por essa altura, o Tibete estava a abrir-se ao Ocidente, uma evolução que era do agrado da minha família. Quando atingi os dez anos, em 1940, os meus pais chamaram-me a Lhasa para assistir à cerimónia que entronou o décimo quarto Dalai-Lama, Tenzing Gyatso, aquele que ainda nos guia e em quem me inspirei para o meu novo nome. Logo a seguir fui mandado para uma escola inglesa em Darjeeling, como era costume entre as famílias de alta sociedade do Tibete."

"O senhor estudou numa escola inglesa?"

O bodbisattva assentiu com a cabeça.

"Durante muitos anos, meu amigo."

"Daí o seu inglês tão... uh... tão britânico. Calculo que tenha achado tudo um pouco diferente..."

"Muito diferente", confirmou Tenzing. "O tipo de disciplina era diferente e os rituais também.

Mas a principal diferença radicava na metodologia. Quando se trata de analisar uma questão, há todo um universo a separar-nos. Descobri que vocês, os ocidentais, gostam de dividir um problema em vários problemas menores, gostam de o separar e isolar para melhor o analisar. É um método que tem as suas virtudes, não o nego, mas possui um defeito terrível."

"Qual é?"

"Cria a impressão de que a realidade é fragmentada. Foi isso o que eu descobri em Darjeeling com os vossos professores. Para vocês, uma coisa é a matemática, outra a química, outra a física, outra o inglês, outra o desporto, outra a filosofia, outra a botânica. Na vossa maneira de pensar, todas as coisas são separadas." Abanou a cabeça. "Isso é uma ilusão, claro. A natureza das coisas está na sunyata, o grande vazio, e está também na Dharmakaya, o Corpo do Ser. A Dbarmakaya encontra-se em todas as coisas materiais do universo e reflecte-se na mente humana como bodhi, a sabedoria iluminada. O Avatamsaka sutra, que é o texto fundamental do budismo mabayana, assenta na idéia de que a Dbarmakaya está em tudo. Todas as coisas e todos os acontecimentos encontram-se relacionados, unidos por fios invisíveis. Mais do que isso, todas as coisas e todos os acontecimentos são a manifestação da mesma unidade." Pausa. "Tudo é um."

"O senhor foi então confrontado com dois mundos totalmente diferentes."

"Totalmente diferentes", concordou o bodhisattva. "Um que tudo fragmenta, outro que tudo une."

"Deu-se mal em Darjeeling?"

"Pelo contrário. O pensamento ocidental foi uma revelação. Eu, que antes chorava por estar fora do Tibete, agora abraçava a nova maneira de pensar. Ainda por cima porque atingi a excelência em duas disciplinas, a matemática e a física. Tornei-me o melhor aluno da escola inglesa, melhor que qualquer inglês ou indiano."

"Ficou em Darjeeling até quando?"

"Até atingir os dezessete anos."

"Foi nessa altura que voltou para o Tibete?"

"Sim. Em 1947, justamente no ano em que os britânicos saíram da Índia, regressei a Lhasa. Usava agora gravata e tive enorme dificuldade em adaptar-me à vida no Tibete. Aquilo que antes me parecia tão acolhedor como o útero da mãe, 241

afigurava-se-me agora um lugar atrasado, tacanho, provinciano. A única coisa que me fascinava era a mística, era a sensação intelectual de levitar, era o espírito budista de busca da essência da verdade." Ajeitou-se melhor sobre a almofada gigante. "Dois anos depois de chegar ao Tibete ocorreu um acontecimento na China que viria a ter repercussões profundas nas nossas vidas. Os comunistas assumiram o poder em Pequim. O governo tibetano expulsou todos os chineses do país, mas os meus pais viram mais longe. Eram pessoas informadas e conheciam os desígnios de Mao Tsé-

Tung sobre o Tibete. Decidiram, por isso, mandar-me outra vez para a Índia. Mas a Índia já não era a mesma Índia e, através de antigos professores de Darjeeling que conheciam bem os meus dotes na matemática e na física, acabei por ser recomendado para um estágio na Universidade de Colúmbia, em Nova Iorque."

"O senhor foi de Lhasa para Nova Iorque?"

"Imagine", sorriu Tenzing. "Da Cidade Proibida até à Grande Maçã, do Potala até ao Empire State Building." Riu-se. "Foi um choque. Num instante estava a passear pelo Barkhor, no momento seguinte encontrava-me no meio de Times Square."