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que se movem livremente, quando a temperatura desce aos zero graus juntam-se num movimento sincronizado, e é esse movimento que permite a formação do gelo.

Descobriu-se que alguns átomos, quando colocados a temperaturas próximas do zero absoluto, começam a comportar-se como se fossem um único, são trilhões de átomos envolvidos num gigantesco bailado sincronizado. Essa descoberta permitiu que os seus autores ganhassem o Prémio Nobel da Física em 2001. O Comitê Nobel disse que eles tinham conseguido fazer com que os átomos cantassem em uníssono. Essa foi a expressão usada pelo Comitê no seu comunicado. Que os átomos cantassem em uníssono. Ao ritmo de que música, pergunto-vos eu?"

Tomás e Ariana permaneceram calados. A pergunta era retórica, presumiram, e o facto é que o bodhisattva os surpreendera com a revelação da existência deste ritmo, desta batida a que a matéria pulsa.

"Ao ritmo de que música, pergunto-vos eu?", repetiu Tenzing. "Ao ritmo da música cósmica, a mesma música que inspira Shiva na sua dança, a mesma música que faz com que dois pêndulos oscilem em sincronia, a mesma música que faz com que os geradores coordenem o seu movimento de rotação, a mesma música que faz com que a Lua organize o seu bailado de modo a ter sempre a mesma face voltada para a Terra, a mesma música que faz com que os átomos cantem em uníssono. O

universo baila a um ritmo misterioso. O ritmo da dança de Shiva."

"E de onde vem esse ritmo?", perguntou Tomás.

O tibetano fez um gesto vago com as mãos, abarcando todo o pátio do templo.

"Vem da Dharmakaya, vem da essência do universo", disse. "Nunca ouviram falar das ligações entre a música e a matemática?"

Os dois visitantes assentiram com a cabeça.

"Pois a música do universo oscila ao ritmo das leis da física", afirmou Tenzing.

"Em 1996 descobriu-se que os sistemas vivos e a matéria inerte se sincronizam em obediência a uma mesma formulação matemática. Quero com isto dizer que a batida da música cósmica que provoca os movimentos nos intestinos é a mesma que faz com que os átomos cantem em uníssono, a batida que põe os espermatozóides a abanarem a cauda em sincronia é a mesma que orquestra o gigantesco bailado da Lua em torno da Terra. E a formulação matemática que organiza este ritmo cósmico emerge dos sistemas matemáticos sobre os quais assenta a organização do universo: a Teoria do Caos. Descobriu-se que o caos é síncrono. O caos parece caótico, mas tem, na verdade, um comportamento determinista, obedece a padrões e é regido por regras muito bem definidas. Apesar

de ser síncrono, o seu comportamento nunca se repete, pelo que podemos dizer que o caos é determinista mas indeterminável. É previsível a curto prazo, devido às leis determinísticas, e imprevisível a longo prazo, devido à complexidade do real."

Abriu as mãos. "Haverá sempre mistério no fim do universo."

Tomás remexeu-se no seu assento.

"Admito que tudo isso é misterioso", disse. "Mas acha que os sábios anónimos que descreveram a dança de Shiva sabiam da existência desse... desse ritmo cósmico?"

Tenzing sorriu.

"A propósito de como devemos pensar o mundo, disse o Buda: uma estrela ao anoitecer, uma bolha na corrente, um rasgo de luz numa nuvem de Verão, uma candeia tremulante, um fantasma e um sonho."

Os visitantes hesitaram, desconcertados com a resposta.

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"O que quer dizer com isso?"

"Quero dizer que o ritmo cósmico não é perceptível para quem não está iluminado. É preciso ser Buda para observar esse ritmo emergir das coisas. Como podiam os autores das sagradas escrituras saber da existência do ritmo cósmico se ele não é audível para quem não está preparado para o escutar?"

"Pode ser coincidência", argumentou Tomás. "Inventaram a história da dança de Shiva, um belo mito primordial, e depois, por coincidência, descobriu-se que existe um ritmo no universo."

O bodhisattva permaneceu um instante calado, como se estivesse a ponderar o argumento.

"Lembram-se de eu ter dito que os hindus defendem que a realidade última se chama Brahman e que a variedade de coisas e acontecimentos que vemos e sentimos à nossa volta não passa de diferentes manifestações da mesma realidade? Lembram-se de eu ter dito que nós, os budistas, defendemos que a realidade última se chama Dharmakaya e que tudo está relacionado por fios invisíveis, sendo que todas as coisas não passam de diferentes rostos da mesma realidade? Lembram-se de eu ter dito que os taoístas defendem que o Tao é o real, é a essência do universo, é o uno do qual deriva o múltiplo?"

"Sim."

"Será coincidência que, agora, a ciência ocidental venha dizer o mesmo que os nossos sábios orientais já diziam há dois mil anos ou mais?"

"Não estou a entender", indicou Tomás.

O bodhisattva respirou fundo.

"Como sabe, o pensamento oriental defende que o real é uno e as diferentes coisas não passam de manifestações da mesma coisa. Tudo está relacionado."

"Sim, já disse isso."

"A Teoria do Caos veio confirmar que assim é. O bater de asas de uma borboleta influencia o estado do tempo num outro ponto do planeta."

"É verdade."

"Mas a ligação da matéria entre si não se limita a um simples efeito dominó entre as coisas, em que cada uma influencia a outra. A verdade é que a matéria está ligada organicamente entre si. Cada objeto é uma diferente representação da mesma coisa."

"Isso é o que diz o pensamento oriental", insistiu Tomás.

"É o que diz a ciência ocidental também", argumentou Tenzing.

O historiador fez um ar incrédulo.

"A ciência ocidental?"

"Sim."

"Onde é que está dito que a matéria tem ligação orgânica? Onde é que está dito que cada objeto é uma diferente representação da mesma coisa? É a primeira vez que ouço tal coisa..."

O bodhisattva sorriu.

"Os senhores já ouviram falar na experiência Aspect?"

Tomás fez uma careta de ignorância, mas, ao mirar Ariana, percebeu que a referência lhe era familiar.

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"O que é isso?", perguntou, dirigindo-se indistintamente ao tibetano e à iraniana.

"Já vi que a menina está a par desta experiência", observou Tenzing, o olhar perscrutador.

"Sim", confirmou ela. "Qualquer físico conhece essa experiência".

Ariana parecia um pouco abalada. Era notório que o seu espírito científico ocupava-se nesse instante com a avaliação das implicações da observação do velho budista, em particular as inesperadas relações entre a experiência que Tenzing mencionara e o conceito de Dharmakaya que acabara de conhecer.

"Alguém se importa de me explicar o que é isso?", insistiu Tomás.

Tenzing voltou a ajeitar o pano púrpura que lhe cobria o corpo. Observou Tomás fixamente.

"Alain Aspect é um físico francês que liderou uma equipa da Universidade de Paris-Sul numa experiência de grande importância, efectuada em 1982. É verdade que ninguém falou dela na televisão ou nos jornais. Em bom rigor, apenas os físicos e alguns outros cientistas a conhecem, mas não se esqueça do que lhe vou dizer."

Ergueu um dedo. "É possível que, no futuro, a experiência Aspect venha a ser recordada como uma das experiências mais extraordinárias da ciência no século XX."

Olhou para Ariana. "Concorda comigo, menina?"

Ariana assentiu com a cabeça.

"Sim."

O bodhisattva manteve o olhar preso na iraniana.