"Um ditado Zen diz: tanto a fala como o silêncio transgridem."
Ninguém mais falou enquanto o tibetano tomava o seu chá.
O monge que trouxera o chá reapareceu entretanto. Desta vez a bandeja não trazia o bule, mas duas tigelas fumegantes. Ajoelhou-se junto dos visitantes e entregou a cada um uma tigela.
"Tkukpa", disse, com um sorriso. "Di shimpo du."
Nenhum dos dois percebeu, mas ambos agradeceram.
"Thu djitchi."
O monge voltou a apontar para a tigela.
"Thukpa."
Tomás olhou para o conteúdo. Era uma sopa de esparguete com carne e vegetais, de aspecto surpreendentemente convidativo.
"Thukpa?"
"Thukpa”.
O historiador olhou para Ariana.
"Pelos vistos, isto chama-se thukpa."
Comeram-na com gosto, embora suspeitassem que isso se devia mais à fome do que à qualidade da sopa. Em boa verdade, Tomás não era um adepto fervoroso da gastronomia tibetana; os poucos dias que ali vivera foram suficientes para perceber que os pratos locais, para além de não serem muito variados, não primavam pelo requinte de sabores. Nesse sentido, poder-se-ia dizer que a invasão chinesa, atrás da qual vieram inúmeros restaurantes sobretudo da cozinha de Sichuan, constituía mesmo uma bênção, porventura a única coisa boa que a anexação trouxera aos tibetanos.
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Quando os visitantes acabaram a sopa, constataram que o bodhisattva já havia terminado o seu chá e parecia mergulhado na meditação. O monge que os servira levou as tigelas vazias e ficaram
ambos ali sentados, aguardando que algo acontecesse.
Vinte minutos depois, Tenzing abriu os olhos.
"O poeta Bashô disse", começou. "Não procures as pisadas dos anciãos, procura o que eles procuraram."
"Perdão?"
"A vossa busca está demasiado centrada nos anciãos. Em mim, em Einstein, no Augusto. Não procurem os nossos caminhos, procurem o que nós procuramos."
"E se a vossa busca levar ao objetivo da nossa busca?", perguntou Tomás. "Não será mais fácil chegar ao nosso destino seguindo as pisadas de quem já lá chegou?"
"Krishnamurti disse: a meditação não é um meio para atingir um fim, é tanto o meio como o
fim."
"O que quer dizer com isso?"
"Que a busca não é só um meio para chegar a um fim, ela é o próprio fim. Para alguém chegar à verdade, terá de percorrer o caminho."
"Eu entendo", disse Tomás. "Infelizmente, e por motivos que nos ultrapassam, o caminho que os anciãos seguiram é também o objetivo da nossa busca. Queremos conhecer a verdade, mas também precisamos de conhecer o caminho que vocês percorreram para chegar à verdade."
Tenzing ponderou por um momento esta resposta.
"Vocês têm os vossos motivos e eu tenho de os respeitar", concedeu. "A verdade é que Tsai Ken Tan disse: água que é demasiado pura não tem peixe." Suspirou. "Aceito que haja motivos para a vossa água não ser totalmente pura e vou então revelar-vos tudo o que sei sobre este projeto."
Os dois visitantes trocaram de olhar, aliviados por se abeirarem enfim do destino da sua demanda.
"Quando se encontrou em Princeton com Einstein, o primeiro-ministro de Israel desafiou-o a provar a existência ou inexistência de Deus. Einstein respondeu-lhe que era impossível fazer tal prova. Dias depois, no entanto, quase para distrair a mente dos trabalhos requeridos pela sua busca da Teoria de Tudo, resolveu interrogar-me sobre as respostas do pensamento oriental relativamente às questões do universo. Tal como vocês, mostrou-se chocado com a semelhança entre os registos das sagradas escrituras orientais e as mais recentes descobertas nos campos da física e da matemática. Impulsionado por isso, e sendo judeu, pôs-se a inspeccionar o Antigo Testamento em busca de pistas semelhantes. Será que a Bíblia esconderia, também ela, verdades científicas? Será que o saber antigo continha mais saber do que se sabia? Será que o conhecimento místico é mais conhecimento do que se pensava?"
Calou-se um instante, a fitá-los. Depois pegou num livro que se encontrava pousado ao seu lado e exibiu-o aos seus visitantes.
"Conhecem esta obra, presumo."
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Tomás e Ariana observaram o espesso volume que se encontrava nas mãos do velho budista. Não tinham reparado ainda nele e não lhe conseguiram descortinar o título.
"Não."
"Jangbu trouxe-mo enquanto vocês se entretinham com a thukpa", explicou.
Abriu o volume, folheou umas páginas e encontrou o que procurava. "O livro começa assim", indicou, preparando-se para ler em voz alta. "«No princípio, Deus criou os céus e a terra»", recitou. "«A terra era informe e vazia. As trevas cobriam o abismo e o Espírito de Deus movia-Se sobre a superfície das águas. Deus disse: faça-se luz. E a luz foi feita.»" Ergueu o rosto ossudo. "Reconhecem este texto?"
"É a Bíblia."
"Mais exatamente o início do Antigo Testamento, o Gênesis." Pousou o volume no regaço.
"Toda esta parte do texto interessou Einstein imensamente e por um motivo em particular. É que este trecho fundamental coincide, em linhas gerais, com a ideia do Big Bang." Afinou a voz. "É preciso perceber que, em 1951, o conceito de que o universo começou com uma grande explosão ainda não estava firme na mente dos cientistas. O Big Bang era apenas uma de várias hipóteses, sendo colocada em igualdade de circunstâncias com outras possibilidades, designadamente a do universo eterno. Mas Einstein tinha vários motivos para se inclinar para a hipótese do Big Bang. Por um lado, a descoberta de Hubble de que as galáxias se estavam a afastar umas das outras indiciava que antes elas se encontravam juntas, como se tivessem partido de um mesmo ponto. Por outro, o Paradoxo de Olber, que só se resolve se o universo não for eterno. Um terceiro indício era a segunda lei da termodinâmica, que estabelece que o universo caminha para a entropia, pressupondo assim que houve um momento inicial de máxima organização e energia. E, finalmente, as suas próprias teorias da Relatividade, que assentavam no pressuposto de que o universo é dinâmico, estando em expansão ou em retração. Ora, o Big Bang enquadrava-se no cenário de expansão." Fez uma careta com a boca. "Havia, claro, o problema de saber que coisa era essa que contrariava a retração provocada pela gravidade. Para a resolver, Einstein chegou a propor a existência de uma energia desconhecida, a que chamou constante cosmológica. Mais tarde ele próprio rejeitou tal possibilidade, dizendo que essa ideia tinha sido o maior erro da sua vida, mas presume-se agora que Einstein tinha afinal razão e que há, de fato, uma energia desconhecida que contraria a gravidade e que provoca a expansão acelerada do universo. Em vez de se lhe chamar constante cosmológica, no entanto, chama-se-lhe agora energia escura." Observou os seus dois interlocutores. "Estão a seguir o meu raciocínio?"
"Sim."
"Muito bem", exclamou, satisfeito. "O que Einstein procurou determinar foi se haveria verdade escondida na Bíblia. Ele não estava à procura de verdades metafóricas nem de verdades morais, mas de verdades científicas. Será que era possível encontrá-las no Antigo Testamento?"
Tenzing observou os dois interlocutores, como se esperasse que eles respondessem à sua pergunta. Mas ninguém falou e o bodhisattva prosseguiu a sua exposição.