— Não é isso — repreendeu Hurin, falando baixinho. — Não é “precisar”. O que acontece, acontece.
Ninguém lhe deu qualquer atenção.
— Todos precisamos — murmurou Verin, procurando algo nos alforjes. — Mas algumas coisas podem ser ainda mais importantes do que isso.
Ela não falou mais, porém Rand fez uma careta. Queria ficar longe daquela mulher e de suas insinuações e indiretas. Eu não sou o Dragão Renascido. Luz, eu só queria poder escapar de vez dessas Aes Sedai.
— Ingtar, acho que vou continuar seguindo para Falme. Fain está lá, tenho certeza, e, se eu não aparecer logo, ele… ele vai fazer algo de ruim aos habitantes de Campo de Emond. — Rand não mencionara essa parte antes.
Todos o encararam. Mat e Perrin franziram a testa, preocupados, mas pensativos. Verin parecia ter acabado de encontrar uma nova peça que se encaixava em um quebra-cabeça. Loial parecia estupefato, e Hurin, confuso. Já Ingtar estava incrédulo.
— Por que ele faria isso? — perguntou o shienarano.
— Não sei — mentiu Rand —, mas era parte da mensagem que Barthanes passou.
— E Barthanes disse que Fain estava indo para Falme? — indagou Ingtar. — Não. Não faria diferença se tivesse dito. — Ele deu uma risada amarga. — Para os Amigos das Trevas, mentir é tão natural quanto respirar.
— Rand — interveio Mat —, se soubesse como impedir Fain de fazer mal aos habitantes de Campo de Emond, eu impediria. Se eu tivesse certeza de que ele faria isso. Mas preciso daquela adaga, Rand, e Hurin tem mais chance de encontrá-la.
— Eu vou aonde quer que você vá, Rand — a firmou Loial. Ele já terminara de veri ficar se os livros estavam secos e tirava o casaco ensopado. — Mas não vejo como alguns dias a mais mudariam qualquer coisa, de uma forma ou de outra, a esta altura. Tente ser um pouco menos apressado, para variar.
— Para mim, não importa se vamos para Falme agora, amanhã ou nunca — começou Perrin, dando de ombros —, mas se Fain está mesmo ameaçando Campo de Emond… Bem, Mat está certo, Hurin é a melhor forma de encontrá-lo.
— Eu consigo encontrá-lo, Lorde Rand — acrescentou Hurin. — Só me deixe encontrar um vestígio que seja, que levo o senhor direto até ele. Nunca vi algo que deixasse um rastro como aquele.
— Você precisa fazer sua própria escolha, Rand — disse Verin, medindo as palavras —, mas lembre-se de que Falme está sob poder de invasores a respeito dos quais não sabemos quase nada. Se for para lá sozinho, pode ser feito prisioneiro ou pior, e isso não vai adiantar de nada. Tenho certeza de que qualquer escolha que você faça será a correta.
— Ta’veren — ecoou Loial.
Rand ergueu as mãos em um gesto de desistência.
Uno voltou da praça, sacudindo o manto molhado de chuva.
— Não tem nenhuma maldita alma, milorde. Me parece que eles fugiram como porcos pelados. Até a droga do gado sumiu, e também não sobrou uma carroça ou carroção. Metade das casas está completamente vazia. Aposto meu soldo do mês que vem que dá pra seguir essas pessoas pela mobília que jogaram na beira da estrada quando perceberam que ela só fazia peso nas porcarias dos carroções.
— E roupas? — perguntou Ingtar.
Uno piscou um olho só, surpreso.
— Apenas uma coisa aqui e outra ali, milorde. A maioria das coisas que não acharam que valia a pena levar.
— Vão ter que servir. Hurin, acho melhor vestir você e mais alguns como gente daqui, do melhor jeito possível. Assim vocês não se destacam. Quero que vão pra longe, do norte ao sul, até cruzarem com a trilha. — Mais soldados entravam no aposento, e todos se reuniram ao redor de Ingtar e Hurin para ouvir as instruções.
Rand apoiou as mãos na cornija da lareira e ficou olhando para as chamas. Elas o faziam pensar nos olhos de Ba’alzamon.
— Não temos muito tempo — disse. — Eu sinto… alguma coisa… me puxando para Falme, e não temos muito tempo. — Ele notou que Verin o observava e acrescentou, severo: — Não isso. É Fain que eu preciso encontrar. Isso não tem nada a ver com… aquilo.
Verin assentiu.
— Há de ser o que a roda tecer, e todos nós estamos presos ao padrão. Fain chegou aqui semanas antes de nós, talvez meses. Alguns dias a mais farão pouca diferença no que tiver que acontecer.
— Vou dormir um pouco — resmungou, pegando seus alforjes. — Eles não podem ter levado todas as camas embora.
Ele, de fato, encontrou camas no andar de cima, mas apenas algumas ainda estavam com colchões, que eram tão irregulares que ele achou que talvez fosse melhor dormir no chão. Por fim, escolheu uma cama em que o colchão estava apenas afundado no meio. Não havia mais nada no quarto além de uma cadeira de madeira e uma mesa com uma perna bamba.
Ele tirou as roupas molhadas, vestindo uma camisa e uma calça secas antes de se deitar, já que não havia lençóis nem cobertores, e encostou a espada ao lado da cabeceira. Pensou com amargura que a única coisa seca que tinha para se cobrir era o estandarte do Dragão. Mas deixou-o guardado, seguro em seus alforjes.
A chuva batia no telhado, o trovão rugia acima e, de vez em quando, o lampejo de um raio iluminava as janelas. Tremendo de frio, ele rolou de um lado para o outro no colchão em busca de uma posição confortável, ponderando se não seria melhor usar o estandarte como cobertor, questionando se não era melhor continuar a seguir para Falme.
Rolou para um lado, e viu Ba’alzamon de pé ao lado da cadeira, com o tecido branco do estandarte do Dragão nas mãos. O quarto parecia mais escuro ali, como se Ba’alzamon estivesse na beira de uma nuvem de fumaça negra e oleosa. Aquele rosto estava marcado por queimaduras quase curadas, e, sob o escrutínio de Rand, aqueles olhos escuros como breu sumiram por um instante, substituídos por cavernas de fogo. Os alforjes de Rand estavam a seus pés, com as fivelas desfeitas, e a parte que escondia o estandarte estava aberta.
— A hora está chegando, Lews Therin. Mil fios puxados com firmeza, e logo você será amarrado e preso, enviado em um caminho que não pode mudar. Loucura. Morte. Antes de morrer, será que matará mais uma vez tudo aquilo que ama?
Rand olhou de relance para a porta, mas se moveu apenas para se sentar na beira da cama. De que adiantava tentar correr do Tenebroso? Sentia como se sua garganta estivesse cheia de areia.
— Eu não sou o Dragão, Pai das Mentiras! — respondeu, rouco.
A escuridão atrás de Ba’alzamon se revolveu, e fornalhas rugiram quando ele riu.
— Você me honra. E se diminui. Eu o conheço bem demais. Enfrentei você mil vezes. Mil vezes mil. Conheço até sua alma miserável, Lews Therin Fratricida. — Ele riu outra vez.
Rand pôs as mãos na frente do rosto para se proteger do calor daquela boca flamejante.
— O que você quer? Não vou servi-lo. Não farei nada que você queira. Prefiro morrer!
— Você vai morrer, verme! Mas quantas vezes morreu ao longo das Eras, seu tolo, e de que sua morte adiantou? O túmulo é frio e solitário, exceto para os vermes. O túmulo é meu. Dessa vez você não renascerá. Dessa vez, a Roda do Tempo será quebrada, e o mundo será refeito à imagem da Sombra. Dessa vez sua morte será para sempre! O que você escolherá? A morte eterna? Ou a vida eterna… e poder?
Rand mal percebeu que estava de pé. O vazio o cercara, saidin estava lá, e o Poder Único fluiu para dentro dele. Aquilo quase partiu o vazio. Era real? Era um sonho? Será que ele conseguia canalizar em um sonho? Mas a torrente que corria para dentro dele acabou com todas as dúvidas que tinha. Ele arremeteu contra Ba’alzamon, golpeando com puro Poder Único, com a força que girava a Roda do Tempo, uma força que podia fazer os mares ferverem e devorar montanhas.
Ba’alzamon deu meio passo para trás, segurando o estandarte diante de si com firmeza. As chamas cresceram em seus olhos e boca e a escuridão pareceu cobri-lo em um manto feito de sombras. Feito da Sombra. O Poder afundou naquela névoa negra como água na areia seca.