— Gawyn vai comer o próprio coração quando souber disso — disse, rindo. A risada soou forçada.
Nynaeve olhou bem para ela, e então para Min. Estava na hora da parte perigosa.
— Vocês estão prontas?
O sorriso de Elayne se desfez.
— Estou pronta.
— Pronta — respondeu Min.
— Onde vocês… nós… vamos?… — perguntou Setah, acrescentando mais do que depressa um: — … Se me permite a pergunta.
— À cova dos leões — respondeu Elayne.
— Dançar com o Tenebroso — acrescentou Min.
Nynaeve suspirou e sacudiu a cabeça.
— O que elas estão tentando dizer é que vamos para onde ficam todas as damane, e pretendemos libertar uma delas.
Setah ainda estava boquiaberta quando foi empurrada para fora do estábulo.
Bayle Domon observava o sol nascente do convés de seu navio. As docas já começavam a ficar movimentadas, embora as ruas que saíam do porto estivessem bastante vazias. Uma gaivota empoleirada em uma estacada o encarava. Gaivotas tinham olhos impiedosos.
— Tem certeza, capitão? — indagou Yarin. — Se os Seanchan se perguntarem o que estamos todos fazendo a bordo…
— No caso, você só precisa ter certeza de que tem mesmo um machado perto de cada corda — retrucou Domon, seco. — E Yarin? No caso de um homem tentar cortar qualquer corda antes que aquelas mulheres estejam a bordo, eu vou quebrar a cabeça dele.
— E se elas não vierem, capitão? E se em vez delas vierem os soldados Seanchan?
— Acalme essas tripas, homem! Se os soldados vierem, disparo para a entrada do porto e que a Luz tenha piedade de nós. Mas até os soldados chegarem, vou esperar mesmo aquelas mulheres. Agora vá fingir que não está fazendo nada.
Domon voltou a olhar para a cidade, na direção de onde as damane eram mantidas. Seus dedos tamborilavam nervosamente na amurada.
A brisa do mar trazia o cheiro das fogueiras acesas para o café da manhã e tentava balançar o manto carcomido de Rand, mas ele o segurava junto ao corpo com uma das mãos, enquanto Vermelho se aproximava da cidade. Não haviam encontrado casaco algum que coubesse nele entre as roupas deixadas para trás naquele vilarejo, e ele achou que era melhor tomar o cuidado de manter escondidos os bordados prateados nas mangas e as garças no colarinho. A tolerância dos Seanchan aos conquistados que portavam armas poderia não se estender àqueles com espadas com a marca da garça.
As primeiras sombras da manhã se alongavam à sua frente. Ele conseguia distinguir Hurin avançando com o cavalo pelos pátios de carroções e cercados para as montarias. Apenas um ou dois homens andavam entre as fileiras de carroções dos mercadores, e todos usavam os longos aventais de fabricantes de rodas e ferreiros. Ingtar, o primeiro a entrar, já estava fora de seu campo de visão. Perrin e Mat seguiam atrás de Rand um pouco afastados um do outro. Ele não olhou para trás para ver como estavam. Teoricamente, não se conheciam. Eram apenas cinco homens que chegavam a Falme nas primeiras horas da manhã, mas não estavam juntos.
Ele adentrou a área dos cercados. Os cavalos já se aglomeravam perto da cerca à espera da comida. Hurin enfiou a cabeça para fora, entre dois estábulos com as portas ainda fechadas e travadas, notou Rand e fez um sinal antes de voltar a se esconder. Rand passou a conduzir o garanhão baio naquela direção.
Hurin estava parado, segurando o cavalo pelas rédeas. Usava uma longo manto em vez do casaco, e, apesar do tecido pesado ocultar a espada e a quebra-espadas, ele tremia de frio.
— O Lorde Ingtar está logo ali atrás — disse, indicando a passagem estreita com um gesto de cabeça. — Ele mandou a gente deixar os cavalos aqui e seguir o resto do caminho a pé. — Enquanto Rand apeava, o farejador acrescentou: — Fain seguiu direto por aquela rua, Lorde Rand. Quase posso sentir o cheiro dele daqui.
Rand levou Vermelho até a parte de trás do estábulo, onde estava o cavalo de Ingtar, já amarrado. O shienarano não parecia muito um lorde naquele casaco de lã sujo, com o couro esburacado e desgastado em diversos pontos. A espada parecia estranha presa ao cinturão sobre aquela roupa. Mas seu olhar era fervoroso.
Depois de amarrar Vermelho ao lado do garanhão de Ingtar, Rand parou diante de seus alforjes. Não conseguira deixar o estandarte para trás. Não achava que algum dos soldados fosse mexer em suas bolsas, mas não podia dizer o mesmo de Verin. Também não podia prever o que ela faria se encontrasse o estandarte. Ainda assim, ficava nervoso por tê-lo consigo. Resolveu deixar os alforjes para trás, amarrados na sela.
Mat se juntou a eles, e alguns instantes depois chegaram Hurin e Perrin. Mat usava uma calça larga enfiada nas botas, e Perrin, um manto curto demais. Rand achou que pareciam um grupo de mendigos mal-intencionados, mas haviam passado despercebidos pela maior parte do caminho até ali.
— Agora — disse Ingtar. — Vamos ver o que acontece.
Eles saíram conversando pela rua de terra batida como se estivessem caminhando a esmo, passaram pelos pátios dos carroções e seguiram pelas ladeiras com calçamento de pedra. Rand não prestava muita atenção ao que dizia, e muito menos ao que qualquer um dos outros falava. O plano de Ingtar era parecerem como qualquer grupo de homens andando juntos, mas havia pouquíssima gente fora de casa. Cinco homens já compunham uma multidão naquelas ruas frias pela manhã.
Eles andavam em grupo, mas era Hurin quem os conduzia, farejando o ar e virando em uma rua ou outra. Os demais seguiam atrás dele, fingindo ser o que pretendiam fazer desde o início.
— Ele andou de um lado para o outro nessa cidade — resmungou Hurin, franzindo a testa. — Espalhou o cheiro por tudo que é lado, e fede tanto que é di ícil distinguir o antigo do novo. Pelo menos sei que ele ainda está aqui. Parte do rastro não pode ter mais do que um dia ou dois, tenho certeza. Tenho certeza — acrescentou, com mais convicção.
Mais algumas pessoas começaram a aparecer. Um vendedor de frutas arrumando as mercadorias na mesa, um sujeito apressado levando um grande rolo de pergaminho debaixo do braço e uma prancheta atravessada nas costas, um amolador de facas passando óleo no eixo de sua roda, apoiada em um carrinho de mão. Duas mulheres passaram, indo na direção oposta. Uma estava com os olhos baixos e uma coleira prateada no pescoço, a outra usava um vestido com bordados de raios, segurando uma corrente prateada enrolada no braço.
Rand parou e prendeu a respiração. Fez um esforço para não se virar e olhar para elas.
— Aquilo era…? — Os olhos encovados de Mat estavam arregalados. — Aquilo era uma damane?
— Foi assim que foram descritas — respondeu Ingtar, seco. — Hurin, vamos passar por cada rua dessa maldita cidade da Sombra?
— Ele andou por toda parte, Lorde Ingtar — respondeu o farejador. — O fedor dele está em todo lugar. — Tinham chegado em uma área onde as casas de pedra tinham três ou quatro andares e eram grandes como estalagens.
Dobraram uma esquina, e Rand foi surpreendido com a visão de cerca de vinte soldados Seanchan montando guarda em frente a uma grande casa em um dos lados da rua… Além de duas mulheres com vestidos de raios conversando na entrada de outra, do lado oposto da rua. Um estandarte tremulava ao vento acima da casa que os soldados protegiam: um gavião dourado segurando raios em suas garras. Nada identificava a casa onde as mulheres conversavam, a não ser elas mesmas. A armadura do oficial resplandecia, com tons de vermelho, preto e dourado, e o elmo folheado fora pintado para parecer a cabeça de uma aranha. Então Rand notou as duas grandes silhuetas agachadas entre os soldados, ambas com a pele de couro, e quase tropeçou.
Grolm. Não tinha como confundir aquelas cabeças em forma de cunha com três olhos. Não pode ser. Talvez ele estivesse mesmo dormindo, e aquilo tudo fosse um pesadelo. Talvez a gente ainda nem tenha chegado em Falme.