Por todos os lados, Rand ouvia os sons de pessoas se mexendo, sapatilhas arrastando no chão e murmúrios suaves de conversas. Não viu uma alma sequer, mas conseguia imaginar muito bem alguém entrando no corredor, deparando-se com cinco homens que se esgueiravam com armas em punho e soando um grito de alarme.
— Ali dentro — sussurrou Mat, apontando para um par de grandes portas de correr logo à frente, com puxadores entalhados por um único ornamento. — Pelo menos a adaga está ali.
Ingtar olhou para Hurin. O farejador abriu as portas, e o lorde saltou para dentro com a espada a postos. Não havia ninguém ali. Rand e os outros entraram às pressas, e Hurin fechou as portas mais do que depressa.
Biombos decorados ocultavam todas as paredes e qualquer outra porta que pudesse haver no recinto, além de velar a luz que entrava pelas janelas que deviam dar para a rua. Em uma das extremidades da grande sala havia um armário alto circular. Na outra, uma pequena mesa, com uma cadeira solitária sobre um tapete, virada de frente para ela. Rand ouviu Ingtar ofegar, mas teve vontade apenas de suspirar aliviado. A Trombeta de Valete, curva e dourada, estava apoiada em um suporte na mesa. Abaixo dela, o rubi no cabo da adaga ornada refletia a luz.
Mat correu até a mesa, pegando a Trombeta e a adaga.
— Conseguimos! — exclamou, brandindo a adaga na mão. — Conseguimos as duas.
— Não fale tão alto — protestou Perrin, se encolhendo um pouco. — Ainda não saímos daqui com elas. — Ele mantinha as mãos no cabo do machado, mas parecia querer segurar qualquer outra coisa.
— A Trombeta de Valere. — A voz de Ingtar era reverente. Ele a tocou, hesitante, passando um dedo pela inscrição prateada ao redor da boca e balbuciando a tradução. Então, afastou a mão com um tremor de empolgação.
Hurin afastava os biombos que ocultavam as janelas. Tirou o último do caminho e olhou para a rua abaixo.
— Aqueles soldados ainda estão ali, parece que criaram raízes. — Ele estremeceu. — E aquelas… coisas, também.
Rand se juntou a ele. As duas feras eram grolm, não havia como negar.
— Como foi que eles… — Quando ergueu o olhar da rua, as palavras morreram. Olhava por cima de um muro, para o jardim da grande casa do outro lado da rua. Conseguia ver onde outros muros haviam sido derrubados, unindo-o a outros jardins. Ali, algumas mulheres sentavam-se em bancos ou andavam pelas trilhas, sempre aos pares. Mulheres unidas pelo pescoço e pelo pulso pela corrente prateada. Uma das que usavam uma coleira no pescoço olhou para cima. Estava longe demais para ele distinguir as feições com clareza, mas, por um instante, pareceu que seus olhares se encontraram, então ele soube. Seu rosto ficou pálido. — Egwene — ofegou.
— Do que está falando? — indagou Mat. — Egwene está em Tar Valon. Quem me dera estar lá também.
— Ela está aqui — a firmou Rand. As duas mulheres estavam se virando, caminhando em direção a um dos prédios do outro lado dos jardins. — Ela está aqui, ali do outro lado da rua. Ah, Luz, e está usando uma daquelas coleiras!
— Você tem certeza? — perguntou Perrin. Ele foi olhar pela janela. — Não a vejo, Rand. E… e eu reconheceria Egwene se visse, mesmo a essa distância.
— Tenho certeza — retrucou Rand. As duas mulheres desapareceram dentro de uma das casas que davam para a rua seguinte. Sentiu o estômago dar um nó. Ela devia estar segura. Ela devia estar na Torre Branca. — Eu preciso tirá-la de lá. O restante de vocês…
— Então! — A voz arrastada era suave como o som das portas deslizando nos trilhos. — Vocês não são quem eu esperava.
Por um breve instante, Rand o encarou, estupefato. O homem alto de cabeça raspada que entrara na sala usava uma longa túnica azul que arrastava no chão. Suas unhas eram tão longas que Rand se perguntou como ele conseguia segurar qualquer coisa. Os outros dois que se postavam atrás dele, subservientes, tinham apenas metade do cabelo escuro raspada, e o restante preso em uma trança do lado direito do rosto. Um deles trazia uma espada embainhada nos braços.
Rand teve apenas um instante para olhar, e então os biombos caíram para revelar, de cada lado da sala, uma porta apinhada com quatro ou cinco soldados Seanchan. Todos sem elmos, mas de armadura e com as espadas em punho.
— Vocês estão na presença do Grão-lorde Turak — começou o homem que segurava a espada, olhando com raiva para Rand e os outros.
Um leve movimento de um dedo com a unha pintada de azul o interrompeu. O outro serviçal avançou com uma reverência e começou a tirar a túnica de Turak.
— Quando um dos meus guardas foi encontrado morto — começou o homem de cabeça raspada, com a voz calma —, suspeitei daquele que se apresenta como Fain. Suspeito dele desde que Huan morreu daquele jeito misterioso, e ele sempre quis essa adaga.
Ele abriu os braços para que o serviçal removesse a túnica. Apesar da voz suave e quase musical, Rand viu que os braços e o peito liso eram fortes e musculosos quando o estranho ficou nu até a faixa azul que segurava uma calça branca larga, feita de centenas de vincos. O homem parecia desinteressado e indiferente às lâminas nas mãos dos outros cinco. — E então encontro estranhos que pegaram não apenas a adaga, mas também a Trombeta. Será agradável matar um ou dois por perturbarem minha manhã. Os que sobrarem me contarão quem são e por que vieram. — Ele estendeu uma das mãos sem olhar, e o homem com a espada embainhada pôs o cabo em sua mão. Ele sacou a lâmina pesada e curva. — Eu não gostaria que a Trombeta fosse danificada.
Turak não deu qualquer outro sinal, mas um dos soldados entrou na sala e estendeu a mão para pegar a Trombeta. Rand não sabia se ria ou não. O homem estava de armadura, mas sua expressão arrogante era tão indiferente às armas deles quanto a de Turak.
Mat acabou com aquilo. Quando o soldado estendeu a mão, Mat a feriu com a adaga com cabo de rubi. Soltando um impropério, o soldado pulou para trás, parecendo surpreso. Então gritou. O grito gelou a sala e paralisou todos onde estavam, estupefatos. A mão trêmula que ele erguia diante do rosto enegrecia, com a escuridão se espalhando do talho sangrento que cruzava a palma. Ele abriu a boca o máximo que conseguiu e uivou, arranhando o próprio braço, depois o ombro. Esperneando e debatendo-se, caiu no chão, guinchando enquanto o rosto enegrecia e os olhos saltavam como ameixas passadas, até que a língua escura e inchada o sufocou. Teve espasmos, asfixiando de um jeito angustiante, batendo os calcanhares, e não se moveu mais. Cada pedaço de pele estava negro como piche podre e parecia prestes a estourar ao menor toque.
Mat umedeceu os lábios e engoliu em seco. Então mudou, apreensivo, a forma de segurar a adaga. Até mesmo Turak encarava a cena, boquiaberto.
— Pois é — disse Ingtar, muito calmo. — Não somos presa fácil. — De repente, ele saltou sobre o cadáver e foi em direção aos soldados que ainda encaravam, com olhos arregalados, o que restava do homem que estivera ao seu lado momentos antes. — Shinowa! — bradou. — Sigam-me! — Hurin saltou atrás dele, e os soldados entraram em formação diante deles. Os sons de aço contra aço aumentavam cada vez mais.
Os Seanchan do outro lado da sala avançaram assim que Ingtar se moveu, mas recuaram ante à adaga que Mat usava para golpear. Pareciam temê-la ainda mais do que o machado que Perrin usava para atacar, dando rosnados sem palavras.
Em poucos instantes, Rand se viu sozinho, encarando Turak. O homem segurava a lâmina em frente ao corpo, na vertical. O choque havia passado. Ele encarava rosto de Rand. O cadáver enegrecido e inchado de um de seus soldados podia muito bem não existir. O corpo também não parecia estar ali para os dois serviçais, não mais do que Rand e sua espada ou os sons do combate, espalhando-se pelos cômodos dos dois lados e avançando pela casa. Os serviçais tinham começado a dobrar a túnica, com muito cuidado, assim que o Grão-lorde pegou a espada. Os dois não olharam para a frente nem mesmo ao ouvir os guinchos do soldado morto e, naquele momento, se ajoelhavam ao lado da porta e observavam a cena com o olhar impassível.