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Desataram a acusar a periferia de gastos irresponsáveis. Tinham razão, claro. O que não disseram, no entanto, é que eles próprios partilhavam grandes responsabilidades por esses gastos e que os seus bancos emprestaram dinheiro à doida, sem cuidar de verificar se os periféricos tinham meios de pagar o que deviam. Conclusão, ficou tudo 494

encravado. Os bancos do centro europeu, em especial os franceses e os alemães, tornaram-se grandes credores da periferia. Os periféricos contraíram tanta dívida aos bancos do centro que, se entrarem em default e não pagarem, grande parte desses bancos irá à falência."

Agnès Chalnot trocou um novo olhar com Carlo del Ponte e, preocupada, suspirou.

"Pois é, isto vai ser um processo judicial muito complicado. Não sei como vamos nós..."

O historiador levantou a mão, sinalizando que ainda não tinha acabado, e voltou-se mais uma vez para o computador portátil.

"Calma que ainda há mais", avisou. "Agora vamos ouvir uma outra conversa telefónica, esta entre o primeiro-ministro português em Bruxelas e o seu ministro dos Assuntos Parlamentares em Lisboa. O

chefe do governo está na delegação portuguesa da Comissão Europeia e as imagens foram captadas horas antes de outro conselho europeu."

Carregou no play e as imagens no ecrã, mostrando um homem sentado a uma secretária e agarrado a um telefone fixo, recomeçaram a movimentar-se.

"Ó António, que ideia é essa de estares a preparar uma lei sobre crimes da responsabilidade de titulares de cargos públicos?", questionou o primeiro-ministro em tom alterado. "Estás doido ou quê?"

"Mas, Gonçalo, já falámos sobre isso!..."

"Falámos sim, mas não foi disto exactamente. O Paulo leu-me há pouco algumas cláusulas e... com franqueza, fiquei estarrecido!" A imagem mostrou o chefe do governo a consultar um papel. "Oito anos de cadeia se um governante actuar de forma a beneficiar ou prejudicar alguém de forma indevida? Cinco anos de prisão para o governante que aceitar ou solicitar vantagem patrimonial ou não patrimonial para si ou terceiros? Três anos de prisão por violação de regras urbanísticas? Um ano de prisão para quem viole as normas de execução orçamental?" O primeiro-ministro português levantou os olhos da cábula que consultava. "Tu estás doido, 495

António? Se tudo isto for penalizado, vamos todos para a prisão, caraças!

O que temos feito nós todos os dias senão beneficiar ou prejudicar alguém de forma indevida? E quando pedimos aos financiadores vantagem patrimonial para as contas dos nossos partidos? E as vezes que temos violado as normas de execução orçamental? Uma lei destas não pode ser apresentada, António!

Nem pensar!"

"Ó Gonçalo, já falámos sobre isso!", insistiu o ministro dos Assuntos Parlamentares. "Temos de dar o ar de que estamos a moralizar a coisa, estás a perceber? Isso dá boa imprensa."

"Pois, mas estes artigos todos parecem-me de mais, António. Imagina que amanhã rebenta uma crise e o país fica em situação de bancarrota ou coisa do género. O que acontece a seguir? Com base nesta lei que andas a congeminar, o Ministério Público abre-nos um processo por violação das normas de execução orçamental, por exemplo, e arriscamo-nos a ir todos para a choça!"

O ministro dos Assuntos Parlamentares riu-se.

"Sabes bem que isso não vai acontecer, Gonçalo. O procurador está controladíssimo..."

"Sim, mas quando sairmos do poleiro os nossos sucessores podem nomear outro gajo para a procuradoria e aí..."

"Os nossos sucessores também vão ter muito cuidadinho. Tal como nós, têm favores a pagar e benesses a distribuir. Somos todos feitos do mesmo barro."

O primeiro-ministro impacientou-se.

"Pois sim", concedeu. "O problema, porém, mantém-se. Esta lei que andas a congeminar parece-me muito perigosa. É melhor parares com esse disparate, ouviste? Não quero cá confusões."

"Não te preocupes, Gonçalo", respondeu o ministro dos Assuntos Parlamentares com uma risadinha. "Está tudo previsto."

"O que queres dizer com isso?"

"Olha só o que diz o artigo sexto da lei", disse, afinando a voz e 496

preparando-se para ler. "A pena aplicável aos crimes de responsabilidade cometidos por titular de cargo político no exercício das suas funções poderá ser especialmente atenuada, para além dos casos previstos na lei geral, quando se mostre que o bem ou valor sacrificados o foram para salvaguarda de outros constitucionalmente relevantes ou quando for diminuto o grau de responsabilidade funcional do agente e não haja lugar à exclusão da ilicitude ou da culpa, nos termos gerais."

Fez-se um silêncio momentâneo na ligação telefónica. "Não percebi patavina", confessou o primeiro-ministro. "O que raio quer isso dizer?"

O seu interlocutor riu-se do outro lado da linha.

"Isto está escrito num legalês propositadamente confuso para que ninguém entenda", explicou. "É um palavreado jurídico que o escritório de advogados do Manel, o nosso ilustre deputado, arranjou como escapatória. Na prática, este artigo significa que ninguém será condenado por coisa nenhuma."

"De certeza?"

"Ó Gonçalo, francamente! Achas mesmo que eu ia parir uma lei que nos encravava a todos? Não, fica descansado! Mesmo que venha a pior das crises, vais ver que ninguém será processado, e muito menos condenado, pelo que quer que seja! Está tudo tratado. Continuamos inimputáveis."

Fez-se um curto silêncio na ligação, enquanto o primeiro-ministro digeria o que acabava de ouvir.

"Vendo bem, acho que essa lei é muito importante para moralizar a vida política em Portugal", sentenciou, a voz de repente serena. "Vou apresentá-la como uma reforma fundamental, destinada a credibilizar a actividade política no país, a prova de que encaramos com seriedade e responsabilidade os nossos deveres para com os Portugueses e não receamos as consequências dos nossos actos de gestão. Quem não deve não teme! É justamente por não devermos que não tememos apresentar uma lei como esta!"

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