Acreditem, meus caros, há mil maneiras de abafar esta história."
As palavras do juiz abalaram os dois procuradores.
"Mas então, se não é para os responsáveis pela crise serem julgados, para que estamos nós a fazer este trabalho todo?", questionou Agnès Chalnot com indignação. "Para quê este processo judicial? Acha que eu e os meus colegas estamos a esforçar-nos tanto para isto dar em nada?"
"Ainda não percebeu?", perguntou Axel Seth num tom de desdém. "Pauvre idiote! O processo do Tribunal Penal Internacional foi criado para entreter o pagode com irrelevâncias, para dar a impressão de que fazíamos alguma coisa sem fazermos realmente nada. Quando um político quer abafar um caso incómodo, o que faz ele? Manda instaurar um inquérito!" Fez um gesto na direcção de Tomás e Raquel. "O que estragou tudo foram esses dois intrometidos, mais aqueles patetas que tiveram a infeliz ideia de gravar e guardar as nossas conversas no edifício da Comissão Europeia e ainda o cabrão desse Filipe Madureira. Se não fossem estas cinco pedrinhas de areia na nossa máquina, o plano teria corrido às mil maravilhas. Mandávamos umas acusações contra os responsáveis americanos pela crise de 2008, dizíamos umas coisas verdadeiras sobre os mercados financeiros desregulados, haveria uma pequena guerra de palavras entre os dois lados do Atlântico e no fim tudo ficava na mesma."
Fez-se um silêncio embaraçado na sala, o presidente da Comissão Europeia seguro de si, os polícias e os procuradores atarantados e sem saberem como proceder.
"E é mesmo assim que as coisas vão ficar", concluiu Tomás com um sorriso resignado, pegando na deixa largada pelo juiz. "Tudo na 510
mesma."
Axel Seth voltou-se para o historiador e lançou-lhe um olhar divertido.
"Você é que já topou tudo, mon cher professor Noronha", observou com um sorriso trocista a bailar-lhe nos lábios. "Um vivaço dos antigos, sim senhor." Assentiu com a cabeça. "E tem razão, sabe?
Como dizemos lá na nossa terra, plus ça change, plus c'est la même chose!"
Virou costas e fez sinal de que queria romper pelo cordão dos carabinieri. Vendo as agentes da Interpol e os procuradores do TPI de braços caídos e sem capacidade de resposta, os guardas italianos abriram alas e um deles puxou mesmo a porta de saída e, com uma vénia, deixou passar o presidente da Comissão Europeia. Caminhando com altivez e majestade, hirto e com o olhar distante dos que se sabem intocáveis, Axel Seth mergulhou no manto ténue de sombra que abraçava o imponente edifício dos Uffizi, os passos a ecoarem no mármore dos longos corredores silenciosos até serem enfim engolidos pelo ar denso da noite.
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LXXV
Apesar de se tratar de um albergue de terceira categoria situado numa ruela perdida nas vizinhanças do Duomo, para alguém que como Tomás passara as duas últimas noites a dormir sentado, a primeira num camião e a segunda num comboio, a apresentação limpa e arrumada e o conforto do quarto davam a impressão de que se encontrava no mais luxuoso dos hotéis de Florença. O Ritz não lhe pareceria melhor.
Depois de tomar banho, o primeiro desde que saíra do seu apartamento em Lisboa para visitar a mãe em Coimbra, dois dias antes, estendeu-se na cama e sentiu os olhos pesarem; sabia que dormiria profundamente nessa noite. Havia uma coisa, porém, que precisava de fazer antes de adormecer. O seu olhar desviou-se para o mostrador digital do relógio pousado sobre a mesinha-de-
-cabeceira.
Duas e meia da manhã.
Não era propriamente a melhor hora para ligar a ninguém, pois não? O assunto, no entanto, era da máxima urgência e não ficaria descansado enquanto não o resolvesse. A confusão das últimas quarenta e oito horas mantivera-o de tal modo ocupado que não tinha tido oportunidade de lidar com a questão, mas agora que deixara de ter perseguidores no encalço e dispunha enfim livremente de acesso aos meios de comunicação, precisava de resolver as coisas.
Agarrou no telefone do quarto e digitou os algarismos no teclado, começando pelo indicativo internacional, zero zero, depois o de Portugal, três cinco um, e a seguir o número.
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O sinal de chamada tocou três vezes.
"O Lugar do Repouso, boa noite."
Atendeu uma voz feminina estremunhada, com certeza a funcionária encarregada do turno da noite.
"Boa noite, minha senhora", disse com voz mansa, consciente de que a hora não era a melhor. "Peço desculpa por estar a ligar tão tarde. Sou o filho da dona Graça Noronha, uma das pessoas alojada aí no lar. Sabe dizer-me se a minha mãe está bem?"
Ouviu o que parecia um bocejo do outro lado da linha. "Sim, com certeza", foi a resposta da mulher, visivelmente fatigada. "Porquê?"
"É que... bem, havia um problema com o pagamento da mensalidade e foi-me dado um prazo até esta noite para regularizar a situação, senão... senão ela seria expulsa às oito da manhã de amanhã.
Sabe dizer-me como está isso?"
"Sou a auxiliar de serviço, não sei nada sobre essas coisas. Se é para questões administrativas, terá de ligar amanhã de manhã."
"Pois, justamente, amanhã de manhã poderá ser demasiado tarde porque ela... enfim, será expulsa, não é? Queria tratar do assunto antes que isso acontecesse, como decerto compreenderá."
"Como lhe disse, sou a auxiliar de serviço", retorquiu a mulher, a impaciência a espreitar-lhe na voz. "Para questões administrativas ligue amanhã de manhã, se faz favor."
A pessoa do outro lado da linha começava a parecer uma gravação. Tomás percebeu que com ela não resolveria o problema.
"Tem por acaso o contacto da senhora directora?" "A doutora não está."
"Sim, com certeza. Mas tem o contacto dela?" A mulher hesitou.
"Não se telefona à senhora doutora a uma hora destas", acabou por dizer, empertigando-se. "Faça o favor de ligar amanhã."
Não estava a ser fácil conseguir a cooperação daquela alma.
"Tem toda a razão", disse Tomás, sempre com a voz dócil. "O
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problema, como decerto compreenderá, é que queria evitar que a minha mãe amanhã fosse posta na rua. Daí a minha urgência em falar com a doutora Maria Flor..."
"Ligue amanhã."
O historiador massajou o couro cabeludo com a ponta dos dedos, como se tivesse esperança de assim arranjar ideias que lhe permitissem convencer aquela casmurra.
"Oiça, não haverá mesmo nenhuma maneira de..." "Ligue amanhã, já lhe disse!"
Esta última frase foi disparada de forma mais ríspida, como se a mulher indicasse, e não com subtileza, que estava a atingir o limite da paciência.
Tomás suspirou.
"Pronto, está bem. Muito obrigado."
Desligou o telefone e ficou de olhar perdido na janela. Por cima dos telhados podia ver a cúpula iluminada do Duomo, mas a última coisa naquele momento presente no seu pensamento eram as maravilhas arquitectónicas de Florença. Agora que resolvera a inopinada situação em que se metera, precisava de desatar o nó que envolvia a mãe no Lugar do Repouso antes que ela fosse expulsa, mas a hora e a distância pareciam acorrentá-lo ainda.
A verdade é que não havia maneira de se assegurar de que as suas contas bancárias já estavam desbloqueadas. Com toda a certeza as autoridades não tinham tido tempo para resolver esse problema.