Выбрать главу

"O meu Manel há muito que deixou de trabalhar", dizia uma delas. "Para quê? Desde que criaram o rendimento social de inserção que não está para se chatear."

"Mas isso não chega a duzentos euros, dona Ermelinda!"

"E então? Ainda são mais cento e trinta por mim e quase cem por cada uma das três crianças. Tudo junto dá uns seiscentos euros, o que pensa a senhora? É mais do que o salário mínimo! Quando o 88

Manel trabalhava a terra, lá em Rio Maior, ganhava uns quinhentos com muita suadeira. Agora dão-nos mais para não fazermos nada.

Para que ia ele trabalhar? Só se fosse parvo!"

"Realmente", concordou a amiga. "Ganhar seiscentos euros sem fazer nada é obra."

"E com os biscates que ele e eu fazemos por fora, sem facturas nem recibos, está a ver?, a coisa vai para cima de mil à vontade."

"Mas, ó dona Ermelinda, a ser assim quem é que trabalha a terra?"

Dona Ermelinda encolheu os ombros.

"Ninguém, ora essa!" Soltou uma risada. "Só se forem os otários e os imigrantes que não têm direito a nada..." A amiga suspirou.

"Pois olhe, o meu Zezinho é o contrário", disse num tom resignado. "Por mais que se esforce não consegue arranjar trabalho, coitadinho, e anda aos caídos lá em casa. Já bateu a todas as portas, já implorou por emprego, até nem se importa que lhe dêem uma coisinha menos prestigiante desde que seja trabalho, mas nada.

Dizem que está velho, veja lá! Tem quase quarenta anos e, desde que o banco lhe ficou com o apartamento, ele e a família vieram viver connosco. Agora não me desamparam a loja! Está a ver a minha vida?"

Tomás sacudiu a cabeça. Era feio ouvir a conversa dos outros, ensinara-lhe a sua mãe, e ele estava a prevaricar em grande. Não podia ser. Concentrou-se por isso no jornal que o seu parceiro do lado lia com afinco. Tratava-se de um diário desportivo de grande circulação e o tema do momento era, pelos vistos, uma qualquer contratação que o FC Porto acabara de fazer. Espreitou a notícia e viu a fotografia do jogador em causa, um defesa brasileiro que custara dezassete milhões de euros, Tomás até releu o número para ver se tinha visto bem, dezassete milhões por um defesa!, mas a leitura foi interrompida por um movimento brusco do seu parceiro. Olhou instintivamente para 89

ele e verificou que o homem do jornal o fitava com ar furioso, irritado por ter o vizinho a ler-lhe as "suas" notícias.

90

XI

O número do placard electrónico mudou e assinalou por fim o quarenta e dois. Tomás ergueu-se de um salto, aliviado pelo fim da espera, e dirigiu-se ao balcão dois, que ficara livre para o atender.

Do outro lado estava uma mulher de olhar cansado que o encarou sem um sorriso.

"Venho aqui porque perdi o trabalho e, enquanto não soluciono a minha situação, preciso de receber o subsídio de desemprego."

"Tem aí a declaração de situação de desemprego?"

"O que é isso?"

"O seu anterior patrão não lhe passou um documento a declarar que o senhor ficou sem emprego?"

O historiador tirou um papel dobrado no bolso e entregou-o à funcionária.

"Está a referir-se a isto?", quis saber. "É o que a minha faculdade me entregou."

"Faculdade? O senhor era estudante?"

"Não, professor. Fui despedido."

A funcionária estudou o papel; era de facto a declaração necessária. Com um suspiro, como se assim ganhasse energia para lidar com mais aquele caso, voltou-se para o computador e inseriu no seu sistema informático os dados que constavam do documento. Pediu ainda o bilhete de identidade do seu interlocutor e, quando acabou de teclar no computador, tirou de uma gaveta uma resma de papéis impressos e passou-a a Tomás.

91

"Leia este dossiê com atenção", recomendou com secura, como se estivesse a declamar uma deixa muito gasta. "Chama-se deveres dos beneficiários e é o documento onde se estabelecem todas as regras para se poder continuar a receber o subsídio de desemprego." Ergueu dois dedos num gesto maquinal, decerto mil vezes repetido todos os dias. "Há dois deveres que são muito importantes. O primeiro é o de se apresentar quinzenalmente na junta de freguesia onde estiver recenseado. Se não o fizer, perde o subsídio. O segundo é o dever de procurar emprego. Tem de contactar pelo menos uma empresa por semana e tem de comprovar que o fez."

Tomás mirou-a com uma expressão de pasmo estampada na face.

"Comprovar que andei à procura de trabalho?", espantou-se.

"Como raio se faz isso?"

"Fique com comprovativos de que contactou a empresa à procura de emprego", disse a funcionária sem pestanejar, quase como se recitasse um refrão. "Se mandar o currículo por carta registada, por exemplo, guarde o registo dos correios. Se for à empresa procurar trabalho, solicite uma declaração de que o fez."

Levantou o indicador para sublinhar o ponto essencial. "Se não tiver

comprovativ o s ,

p e r de

o

d i r e it o

a o

s u b sí dio

d e

d e s e m p r e g o , e n tendeu?"

O historiador tudo entendeu, mas foi com sentimentos mistos que abandonou o balcão; estar sem trabalho dava, pelos vistos, algum trabalho. Além disso, aquela ideia de se apresentar quinzenalmente na junta parecia-lhe própria de um presidiário em liberdade condicional. Mas enfim, o que poderia fazer?

Ao cruzar a porta e sair para a rua quase chocou com outra pessoa que também abandonava o edifício. Olhou para ela e reconheceu o rapaz barbudo com quem conversara na fila matinal para a senha.

"Isso dos comprovativos é simples", explicou o jovem quando o 92

ainda perplexo Tomás o questionou sobre as burocracias relacionadas com a actividade de desempregado. "Vá ao portal Sapo Emprego na internet e envie o seu currículo por e-mail às empresas lá registadas. O

próprio computador lhe dá o comprovativo de que enviou o e-mail. Guarde-o."

"E depois?"

" D e p o i s a s e m p r e s a s c o n t a c t a m - n o , c l a r o . "

Considerando as montanhas de dificuldades que antevira, Tomás estranhou a facilidade do processo.

"Isso funciona?"

O rapaz riu-se.

"Claro que funcionar", exclamou. "Volta e meia recebo uma resposta das empresas. Querem que vá a uma entrevista ou que vá prestar provas ou até que entre já no dia seguinte ao serviço. Há umas até que estão muito ansiosas por arranjar pessoal."

O historiador hesitou, desconcertado com a informação; havia ali com certeza alguma coisa que lhe estava a escapar.

"Mas se as empresas o querem contratar, isso é... é óptimo!", constatou. Indicou o centro de emprego com o polegar. "O que está aqui a fazer?"