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O seu interlocutor fez uma careta.

"Respondo-lhes sempre que já arranjei trabalho e mando-os dar uma volta."

"Perdão?"

"Oiça, esses trabalhos não me interessam", explicou com uma ponta de impaciência. "Querem pessoal para atender ao balcão ou um operário de têxteis que trabalhe todo o dia fechado na fábrica ou um angariador imobiliário que ande de porta em porta ou um camionista que transporte mercadorias para a Polónia... eu sei lá!" Fez uma careta de escárnio. "Não tirei o curso de Direito para andar a guiar camiões ou passar os dias numa fábrica, pois não? Era o que mais 93

faltava! Para isso já me bastou a aventura na garagem do meu primo."

A resposta deixou Tomás embasbacado. Durante dois segundos abriu e fechou a boca sem produzir qualquer som, até conseguir por fim formatar em palavras a interrogação que lhe enchia a mente.

"É trabalho!", disse, quase escandalizado. "Nos tempos que correm qualquer coisa serve, não lhe parece? Com tanta falta de emprego que por aí há, isso parece-me excelente!..."

O rapaz abanou a cabeça.

"Mas em que mundo anda o senhor?", questionou de novo em tom irónico. "Não temos por aí tantos imigrantes estrangeiros a trabalhar?" Arregalou os olhos para enfatizar a ideia principal. "O que não existe é o trabalho que eu quero com o salário que aceito!"

Tomás permaneceu um instante especado no passeio, um olhar abismado estampado na cara.

"Oiça, não se pode pensar assim..."

O seu interlocutor esboçou um gesto impaciente com a mão.

"Não me venha com conversas dessas, parece a minha mãe!", disse. "Olhe, sabe o que me preocupa? É o meu primo, que ainda não me pagou os últimos dois meses em que trabalhei lá na garagem!

Isso é que me preocupa!" Fez um estalido com a língua. "Tenho de ir lá falar com ele."

"A garagem não é em Coimbra?"

"Pois é. Mas estou teso que nem um carapau e ando a adiar a viagem. Talvez quando receber a próxima mensalidade possa..."

"Por acaso vou amanhã a Coimbra", atalhou Tomás. "Se quiser, dou-lhe boleia. Dá jeito levar companhia, sempre vou mais entretido."

O rapaz, que virava já as costas para se ir embora, deteve-se e fitou o historiador.

"A sério? Fixe!"

Trocaram contactos. O rapaz chamava-se Alexandre e marcaram 94

o ponto de encontro no Campo Pequeno para o dia seguinte.

Depois de se despedirem Tomás encaminhou-se para a paragem da Carris, meditando sobre tudo o que acontecera e vira desde que nessa manhã chegara ao centro de emprego; parecia-lhe incrível como, vista de perto, a situação do desemprego revelava contradições e complexidades tão insuspeitadas.

Foi com a cabeça mergulhada nos seus pensamentos, o corpo a guiar-se como se tivesse um piloto automático, que fez a viagem de autocarro e, quase mecanicamente, saiu na sua paragem e encaminhou-se para casa.

Sentiu algo travá-lo.

Despertou dos seus pensamentos e olhou para o lado, espantado. Viu um homem de capuz de chuva na cabeça a segurá-lo pelo braço, a face tapada pela sombra projectada pelo carapuço.

"Então? Já não se fala aos amigos?"

Ultrapassada a surpresa inicial, Tomás fixou o rosto ensombrado e, habituando-se à penumbra, reconheceu-o.

"Filipe!", exclamou. "O que estás aqui a fazer?"

Era Filipe Madureira, o seu velho compincha dos tempos do liceu de Castelo Branco. O amigo esboçou um leve sorriso, olhou em volta para se certificar de que ninguém olhava para eles e, tranquilizado, aproximou a boca do ouvido de Tomás.

"Preciso de ajuda", sussurrou. "Estou em perigo."

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XII

A chama oscilante das velas projectava sombras fantasmagóricas que mudavam constantemente de configuração; pareciam gigantes a dançar e a transfigurar-se nas paredes rugosas do templo. As velas alinhavam-se pelo chão num pentagrama, duas pontas para cima e uma para baixo. Os vários fios de fumo suave erguiam-se como serpentes bamboleantes até se entrelaçarem a meio caminho na lenta ascensão para o tecto; davam a impressão de pequenos vulcões a expirar fúria suave.

As figuras de túnica negra e capuz posicionaram-se em silêncio em torno do pentagrama formado pelas velas, todas voltadas para o púlpito a encararem um vulto de túnica escarlate que se encontrava de costas; atrás do grupo permanecia uma única figura com uma túnica branca, isolada das restantes. O homem no púlpito virou-se lentamente e enfrentou os seus apaniguados.

"Em nome do grande Satanás, ocupamos este altar do senhor dos Infernos", entoou o vulto escarlate no púlpito, erguendo os braços e fazendo com eles um movimento circular. "Abençoado seja o nosso senhor."

"Ele traz-nos alegria!", retorquiu a congregação em coro. "Abençoado seja o senhor Satanás."

O vulto escarlate, que evidentemente era o líder e conduzia a cerimónia, retomou a palavra.

"O nosso senhor infernal abençoa-nos com a sua ajuda."

"Ele é o mestre da Terra", devolveu a congregação. "Glória a 96

Satanás."

"A Terra é tua, senhor Lúcifer", disse o mestre-de-cerimónias.

"Ajuda-me contra os meus inimigos, pois eu sou o teu servo. Protege-me daqueles que me perseguem."

"Salva-nos dos que nos odeiam", entoou o grupo. "Protege os que te veneram."

A cerimónia decorria em ritmo de parada e resposta. O vulto escarlate recitava um versículo ritual e a congregação respondia em coro com outro versículo.

"Vem até nós, senhor Ahriman, e dá-nos nova vida."

"Somos o teu povo e os teus escravos."

"Dá-nos o teu poder para tua glória, senhor Satanás."

" C o m e l e d e r r o t a r e m o s o s q u e s e t e o p õ e m . "

"Escuta-nos, poderoso Belzebu! Escuta-nos, grande Lúcifer!"

"Que as nossas vozes cheguem a ti."

"Que o senhor do Inferno esteja convosco."

"E contigo também."

O mestre-de-cerimónias voltou a abrir os braços, como se acolhesse no peito aquele por quem rezava.

"Todo o poder e glória para ti, ó Satanás, grande Lúcifer, abençoado Belzebu, eterno Ahriman!"

"Abençoamos e honramos o suserano da Terra e do Inferno."

A figura de escarlate fez uma vénia e a congregação devolveu-

-a. Terminada a oração principal, o mestre-de-cerimónias percorreu a congregação com o olhar.

"Meus irmãos, a hora da grande batalha aproxima-se", disse em tom formal. "Os nossos inimigos posicionam-se contra nós e não podemos mostrar fraqueza neste momento decisivo." Ergueu as mãos e fechou-as em dois punhos diante do peito. "Unidos, venceremos.

Divididos, falharemos. Que não haja dó nem piedade no momento de desferirmos o golpe. A vitória será nossa!"

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"Glória a ti, senhor Satanás."

Fez-se um súbito silêncio no templo. Magus estendeu a mão esquerda e com o indicador fez sinal na direcção do elemento de túnica branca que se encontrava isolado ao fundo do templo.

"Decarabia, chegou a hora."

A figura de túnica branca avançou entre o mar de túnicas negras e imobilizou-se diante do altar.

"Aqui estou, grande Magus."

Com movimentos apropriadamente lentos, tão vagarosos que se tornavam solenes, Magus desceu do altar e abeirou-se do prosélito.