Embora tivesse a configuração de uma pistola, na verdade não parecia uma pistola tradicional. Tinha a coronha, mas o cano era uma abertura, como uma boca vertical, e havia uma faixa amarela a indicar X-26; parecia uma arma futurista retirada de um filme de ficção científica, tipo Blade Runner ou Total Recal!.
"Sim, de facto", concordou, "o formato é estranho."
O dedo de Filipe colou-se à ranhura vertical que se encontrava no lugar do cano.
"Estás a ver isto?", perguntou. "É um arco eléctrico entre dois eléctrodos."
O olhar do anfitrião carregou-se numa expressão inquisitiva.
"Uma arma eléctrica?"
O visitante assentiu.
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"Um taser", identificou. "Actua por electrochoques. O taser faz uma descarga eléctrica que perturba o controlo voluntário dos músculos. Ou seja, quem levar com um tiro de taser fica logo knockout, mas não morre.É uma arma não letal."
O olhar de Tomás manteve-se preso ao taser e a cabeça balançou afirmativamente; experimentara os efeitos daquelas armas uma semana antes em Atenas. Vira-as nas mãos dos polícias gregos, mas apenas de fugida. Só por isso não identificara o objecto no saco do seu convidado.
"Então isso é que é um taser, hem?", perguntou em tom retórico, como se não esperasse resposta. "Pois é, conheço-lhe os efeitos bem de mais. É...
é de facto eficaz."
"Então não é?" Acariciou a arma de electrochoques. "Aqui a X-26 é a minha melhor amiguinha."
Tomás desviou os olhos do taser para o amigo e esboçou um esgar interrogativo.
"Diz-me uma coisa, para que precisas tu de uma arma de defesa?"
Filipe endireitou-se e guardou a pistola eléctrica no cinto, à maneira de um gangster.
"Não te expliquei já que estou em perigo?", lembrou, remetendo para a primeira coisa que dissera ao amigo quando o interpelara na rua. "Ou pensas que cheguei a este estado de indigência absoluta por opção própria?" Abanou a cabeça. "Não, não foi opção. A verdade, meu caro, é que ando em fuga." Voltou a pegar na arma de electrochoques. "E aqui a X-26 é que me protege.
A X-26... e tu, claro."
A conversa entrara numa área fulcral. Para Tomás era evidente que o que se passara na última hora, do inesperado aparecimento do amigo ao seu aspecto indigente e à arma de defesa, tudo isso se relacionava com a fuga que ele acabava de mencionar.
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"Fuga de quê?", quis saber. "Andas a fugir de quem?"
O visitante emudeceu, os olhos semicerrados e fixos no infinito, como se ponderasse o que queria ou podia dizer.
"Receio que não te possa contar nada", acabou por dizer.
"Desculpa, mas é melhor para ti."
O olhar de Tomás saltitou entre o taser e o amigo, na dúvida sobre se aceitaria manter-se na ignorância. A verdade é que ele já o arrastara para o seu problema, fosse ele o que fosse. Tinha o dever de o ajudar mas não tinha o direito de saber porque o ajudava? A posição não lhe parecia razoável. Por outro lado, nutria a convicção de que devia confiar no amigo; se ele achava melhor nada revelar sobre as suas circunstâncias, porque não aceitar isso?
"Está bem", acabou por concordar. "Mas tenho aqui um problema para resolver."
"Então?"
"Preciso de ir amanhã a Coimbra ver a minha mãe", revelou. "Ela sofre de Alzheimer desde os tempos em que... olha, desde a última vez que nos vimos, na Austrália, lembras-te? Desde essa altura que ela está internada num lar e ainda não a fui ver depois de ter regressado da Grécia. Além do mais telefonaram-me do lar e precisam de falar comigo. A viagem até não me dá muito jeito. Desde que perdi o emprego tenho andado atarefado a..."
O visitante abriu a boca, chocado com a novidade.
"Perdeste o emprego?"
Tomás esboçou com os braços um gesto de resignação.
"É a crise, o que queres tu? A faculdade teve de fazer cortes no quadro docente e... olha, ando à procura de trabalho."
"Ah! E agora?"
"E agora tenho de ir lá vê-la." Hesitou, uma ideia a formar-se na mente. "Olha lá, porque não vens comigo? Partimos pela manhãzinha e voltamos ao fim da tarde. Era bom para desanuviares.
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São duas horas para ir e outras duas para voltar. Vou dar boleia a um tipo que conheci no centro de emprego e juntavas-te a nós."
Filipe anuiu de imediato.
"Conta comigo", disse. "Dar um passeio a Coimbra parece-me muito melhor do que ficar aqui fechado em tua casa."
O anfitrião ergueu-se com um movimento enérgico.
"Então está combinado!", exclamou, encerrando o assunto. "Saímos amanhã pelas oito, está bem?"
Cruzou a porta da sala para o corredor e encaminhou-se para o escritório, onde tinha assuntos a ultimar, em particular a burocracia relacionada com o lar onde a mãe se encontrava hospedada.
"Tomás!"
A voz do amigo travou-o a meio do percurso. Deu meia volta e espreitou pela porta de acesso à sala de estar.
"Que foi?"
Filipe esboçou um sorriso caloroso.
"Obrigado."
"Não tens nada que agradecer."
A mão do convidado desceu para o taser que se encontrava anichado no cinto das suas calças.
"Acho que te devo uma explicação por isto, mesmo que simples", disse. "Tu merece-la."
"Ah, não. Não te preocupes."
"Não, a sério", insistiu Filipe. "Não te posso dar pormenores, isso só serviria para agravar as coisas, mas é importante que saibas que a minha presença na tua casa pode constituir um perigo para ti."
Apesar de previsível, a informação esmurrou Tomás com a força de uma ameaça por fim verbalizada. O anfitrião permaneceu um longo instante a fitar o seu interlocutor, tentando ler-lhe os olhos e perceber o verdadeiro alcance do que acabara de lhe dizer.
"De que perigo estás a falar?"
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O convidado respirou fundo; parecia evidente que vivia um conflito interior. Ou nada dizia e tudo ficaria na mesma ou dizia alguma coisa e corria o risco de perder o porto de abrigo em que se transformara a casa do seu anfitrião. A decisão de levantar uma ponta do véu da verdade, contudo, acabou por prevalecer.
"Andam à minha procura."
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XIV
A caneta de tinta permanente deslizava pelo documento, rabiscando a assinatura em tinta negra, quando alguém bateu na madeira da porta do gabinete. O homem sentado à secretária ignorou o toque e continuou a garatujar assinaturas; havia muita burocracia a despachar e ele tinha reservado aquela hora para essa função. A batida, suave e seca, voltou a assinalar a presença de alguém do outro lado da porta; era um toque-toque mudo mas inequívoco.
O homem das assinaturas suspendeu a caneta e respirou fundo, desagradado com a interrupção.
"O que é?", rosnou em direcção à entrada do gabinete, a irritação a espreitar-lhe na voz. "Que se passa?"
A porta abriu-se devagar, quase a medo, e um homem engravatado espreitou para o interior.
"Poderoso Magus, perdoe a interrupção", disse o homem num tom submisso, receando até fitar o chefe nos olhos. "Está muito ocupado?"
"Claro que estou muito ocupado!", disparou Magus com mal contida agressividade. "Que me queres tu, Balam? Não sabes que dei instruções rigorosas para ninguém me incomodar? Como te atreves a desobedecer? Espero que tenhas uma boa desculpa."
O subordinado quase se encolheu; as mãos tremiam-lhe e o rosto assumira a expressão aterrorizada de um animal encurralado.