"É que... recebemos agora uma comunicação de prioridade máxima", balbuciou. "É dirigida exclusivamente a si com encriptação de alta segurança."
A informação acalmou o olhar escuro e selvagem de Magus. O
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mestre recostou-se na cadeira e, passando os dedos pelo rosto, serenou.
"Quem a enviou?"
"A equipa Alfa, poderoso Magus", informou-o o subordinado com presteza, mais tranquilizado pela reacção do chefe. "Quer que lhe passe a comunicação?"
"Passa."
A ordem mais pareceu um grunhido, mas o subordinado entendeu à primeira. Fechou a porta com uma vénia e por momentos fez-se silêncio absoluto no gabinete.
O telefone tocou.
"Decarabia, és tu?"
"Sim, grande Magus."
A voz do outro lado da linha estava longe, mas soou tão forte que parecia encontrar-se na sala ao lado; era incrível a qualidade das linhas de comunicação nos dias que corriam.
"Encontraste o português?"
"Sim, grande Magus."
Magus ronronou com agrado. Este Decarabia fora uma excelente aquisição para o grupo; tinha talentos imprescindíveis que até à sua entrada haviam faltado na organização. A dificuldade em concluir este assunto desde o interrogatório e execução dos dois franceses em Nice era de resto prova disso. Com Decarabia e toda a sua vasta expertise tudo seria diferente daí em diante.
"Onde está ele?"
"Em Lisboa, grande Magus."
"Ah, voltou a casa!", exclamou o líder da organização. "Tens a localização exacta?"
"Ainda não, grande Magus. Estou neste momento a ver no sistema o registo do bilhete de avião que ele comprou para Portugal com um nome falso."
A informação suscitou espanto do outro lado da linha.
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"Ele comprou um bilhete?! Mas... como? Não lhe cortámos o acesso à conta?"
"Deve ter sido com o dinheiro do último levantamento que conseguiu fazer. De qualquer modo, já acedi ao sistema de vídeo-segurança do aeroporto de Lisboa e confirmei visualmente que ele de facto desembarcou no destino. A seguir vou tratar de identificar com precisão o seu paradeiro."
Magus descontraiu.
"Excelente!", disse em tom de aprovação, claramente impressionado com a eficiência do novo recruta; entregara-lhe o caso havia apenas vinte e quatro horas e já apresentava resultados palpáveis. "Pareces estar muito bem encaminhado, sim senhor. Há alguma coisa em que te possa ser útil?"
"A rapidez é essencial", indicou a voz do outro lado da linha.
"Preciso de autorização para partir imediatamente para Lisboa. Depois de o localizar, não lhe quero dar tempo de reagir."
"Com certeza", indicou o chefe. "Avança quando entenderes e usa os fundos que forem precisos, ouviste? O importante é deitar a mão a esse canalha!"
"Sim, grande Magus."
Fez-se silêncio na linha e por momentos apenas se ouviu o estralejar indiferenciado da estática.
"Decarabia?"
"Sim, grande Magus?"
"Depois de lhe sacares tudo o que precisamos, fá-lo sofrer, ouviste?
Fá-lo sofrer bem."
"Sim, grande Magus."
Com um movimento da língua, Magus aspirou um pedaço de carne que lhe tinha ficado preso entre os dentes depois do almoço, emitindo assim um silvo inesperado.
"Mata-o bem devagarinho."
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XV
A longa recta apresentava-se quase vazia. Nesse instante apenas se via a traseira de uma camioneta ao longe e dois carros a virem na faixa contrária. A decisão de não voltar a conduzir enquanto não arranjasse emprego era apenas válida para o transporte dentro da cidade de Lisboa. Tomás seguia por isso agarrado ao volante do seu já enferrujado Volkswagen azul, a velha chapa conspurcada por densas camadas de pó e até de lama; lavara-o quando da última revisão e só voltaria a fazê-lo na próxima.
"Sempre que venho a Portugal", observou Filipe com o olhar perdido no asfalto, "fico surpreendido com a qualidade destas estradas que agora temos por toda a parte."
"É incrível, não é?", concordou Tomás. "Em 1990 não havia sequer uma auto-estrada a ligar as duas principais cidades do país.
Agora existem duas auto-estradas entre Lisboa e Porto e já depois de a crise ter rebentado foi decidido arrancar com uma terceira."
"Uma terceira?"
O historiador riu-se.
"Imagina!"
O amigo abanou a cabeça, desagradado.
"Uma auto-estrada era essencial", disse. "Mas... três? Isso é um esbanjamento criminoso de recursos."
Tomás encolheu os ombros, os olhos sempre fixos no percurso diante dele.
"São os fundos comunitários", indicou. "Se a União Europeia pagava, porque não aproveitar?"
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O silêncio regressou ao interior do Volkswagen. Apenas se ouvia o rugido suave do motor instalado na traseira do automóvel, coisa a que Filipe não estava habituado; tratava-se de uma idiossincrasia daquele modelo em particular.
"Foi assim que Portugal foi parar ao buraco..."
Disse-o num sussurro imperceptível, com excepção da última palavra, que elevou a voz para pronunciar. O condutor, que se distraíra com a estrada, quase deu um salto no assento.
"Buraco?", quis saber com o alarme a encher-lhe o rosto e os olhos a esquadrinharem apressadamente o alcatrão em busca de uma ameaça. "Onde?"
"No país", explicou Filipe com uma gargalhada. "Estava a falar com os meus botões, a dizer que foi a construir estas auto-estradas todas que o país se meteu no atoleiro em que agora se encontra."
Tomás quase bufou de alívio.
"Ah, bom! Estava a ver que ainda pisava um buraco..."
Descontraiu e tirou por momentos os olhos do caminho. "Sabes, a governação tem sido um caos."
Filipe indicou o exterior.
"Pois tem. Olha, se estás no desemprego também o deves a estas auto-estradas todas."
No banco traseiro sentava-se o rapaz do centro de emprego a quem haviam dado boleia. A ouvir a conversa até aí em silêncio, Alexandre remexeu-se no assento e não aguentou mais.
"Peço desculpa, mas isso não faz sentido", declarou. "Qual a relação entre as auto-estradas e o desemprego? Que eu saiba, a construção das auto-estradas deu até emprego a muita gente."
Filipe virou a cabeça para trás.
"Ilusões", disse. "Tudo ilusões."
"Como pode dizer isso? A auto-estrada que estamos a percorrer não é nenhuma ilusão."
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"Olhe, o desemprego que existe resulta de várias crises que se manifestaram ao mesmo tempo", indicou, levantando três dedos.
"Digamos que, à crise de fundo provocada pela transferência da produção do Ocidente para as economias emergentes, se acrescentaram três crises: a dos mercados financeiros, a do euro e a das economias periféricas, incluindo a portuguesa. São coisas separadas, embora a dos mercados financeiros tenha posto a nu as outras, claro. As crises do Ocidente, do euro e da economia portuguesa já existiam, mas estavam silenciosas."
O rapaz do banco traseiro esboçou uma expressão céptica.
"Sim, e depois?", questionou com uma certa insolência. "O que têm as auto-estradas a ver com isso? A sua construção não deu emprego a tanta gente? Como se pode questionar tal evidência?"
"Tenha calma", riu-se Filipe, divertido com a impaciência do companheiro de viagem. "Tem de compreender que as crises financeira e do euro se manifestaram com grande aparato e atingiram toda a gente no planeta, mas houve países que foram mais afectados que outros porque já estavam em crise por razões próprias, embora não o tivessem percebido."