"Está a falar de nós?"
"De nós e da Grécia, por exemplo, mas não só. A Irlanda, a Espanha e a Itália também sofrem de problemas até aqui silenciosos. É
isso que explica que estes países tenham sido mais atingidos que outros quando surgiu a crise financeira e a crise do euro."
Persistente, Alexandre indicou a auto-estrada.
"Está a insinuar que a nossa crise foi provocada pela construção da rede de auto-estradas? Isso é um disparate!"
"A crise da economia portuguesa tem várias causas, umas internas e outras externas. As internas são da nossa responsabilidade e relacionam-se com a perda de competitividade dos nossos produtos no mercado internacional e o recurso à dívida para disfarçar essa realidade, 113
com a crescente insustentabilidade do estado social e com a aposta descontrolada no sector produtivo não-transaccionável."
"Sector não-transaccionável? O que é isso?"
Foi a vez de Filipe apontar para a estrada.
"Olhe, as auto-estradas, por exemplo", indicou. "Será que podemos vender auto-estradas aos estrangeiros? Não podemos. É
um bem que não pode ser transaccionado. Já os sapatos podem ser vendidos ao estrangeiro. Ou a roupa, o vinho e o azeite. São bens transaccionáveis.
Acontece
que
os
sucessivos
governos
portugueses, chefiados por gente iluminada, decidiram que o melhor era mesmo investir no sector não-transaccionável, em coisas que não pudessem ser exportadas. Pusemo-nos assim a construir estradas, pontes, aeroportos, estádios, rotundas, túneis... eu sei lá!
Está a ver como estas auto-estradas constituem parte do problema?"
"Que eu saiba as obras públicas deram trabalho a muita gente!"
"Mas não são exportáveis, entende? Pior ainda, o estado garantiu esses investimentos por muitos e longos anos. Mesmo que queiramos, já não podemos deixar de gastar dinheiro neles."
Alexandre sacudiu a cabeça, baralhado.
"Não percebo", admitiu. "Se acharmos que esses investimentos são ruinosos e quisermos parar com eles, paramos. O que nos impede?"
"Uma coisa chamada PPP. Já ouviu falar?"
"As parcerias público-privadas", esclareceu Tomás. Apesar de estar agarrado ao volante, ia seguindo a conversa com interesse. "Toda a gente sabe o que são."
"As pessoas sabem mesmo o que são as PPP?", questionou Filipe com uma careta céptica. "Duvido. Se soubessem, saíam à rua em massa para derrubar qualquer governo que anunciasse mais alguma."
"Porquê?", admirou-se o rapaz do banco traseiro. "O que têm as PPP de especial? Não são elas uma maneira de fazer obra sem 114
gastar um tostão dos dinheiros públicos?"
Filipe e Tomás soltaram uma gargalhada em uníssono.
"Isso é o que eles dizem!", exclamou o historiador. "Você acreditou mesmo nessa patranha desavergonhada?"
A reacção dos dois homens da frente atrapalhou Alexandre.
"Quer dizer... enfim, era o que eles diziam. Não havia custos para o contribuinte... ou havia?"
"Santa ingenuidade!", proclamou Filipe, revirando os olhos.
Voltou a virar-se para trás. "Vou explicar-lhe o que são as PPP." Fez uma curta pausa, como se planeasse a melhor forma de fazer a demonstração. "Apesar de terem estourado com todo o dinheiro público no betão, os nossos geniais governantes, gente de elevada craveira e douta sapiência, decidiram que não chegava. Era preciso fazer mais betão!
Então o que inventaram esses crânios? Uma maneira de fazer betão e pôr os outros a pagar."
"Esses 'outros' somos nós, claro", esclareceu Tomás. "Nós, mas no futuro, que aliás já é o presente."
"Isso mesmo", concordou Filipe. "Repare, uma PPP faz sentido se o estado decidir fazer uma obra cuja exploração pague o investimento e a manutenção. Como não tem dinheiro, o estado chega ao pé de uns privados e diz-lhes assim: se vocês fizerem esta ponte, por exemplo, prevemos um tráfego de um milhão de automóveis por ano e, com as portagens, vocês recuperam o investimento em quinze anos, pelo que vos concedemos a exploração durante trinta anos, de modo a terem lucro. Os privados ouvem isto e perguntam: que acontece se o tráfego for menor do que o previsto? Azar o vosso, responde o estado, o risco faz parte do investimento numa sociedade capitalista, ou não faz? Os privados vão pensar, fazem as suas contas e, se chegarem à conclusão de que o risco compensa, avançam. É isto uma boa PPP. O privado arrisca, investe e fica com os lucros da exploração ou, se as coisas correrem mal, com os prejuízos.
Os contribuintes não gastam nem ganham um tostão, mas têm a obra 115
feita."
"Pois, é isso uma PPP."
"É isso uma PPP, mas não em Portugal, meu caro! O que se passou cá foi que o estado chegou ao pé dos privados e disse: construam uma auto-
-estrada e fiquem com a exploração durante trinta anos, mas se der prejuízo os contribuintes pagam. Está a entender? Nas PPP portuguesas, o risco dos privados é zero e o risco para os contribuintes é total. Os privados ficam com o lucro e sem risco, o estado fica sem o lucro e com o risco. Assim os governantes apresentavam obra para serem eleitos, claro, e nós depois pagávamos. Ou seja, pagamos agora, porque o futuro já chegou.
Fizeram-se desse modo contratos em que os privados se comprometiam a financiar a obra a troco dos direitos de exploração durante trinta anos."
"Conheço o conceito das PPP", assentiu Alexandre. "Isso tem uns anos, não tem?"
"O primeiro projecto do género foi a Ponte Vasco da Gama, que acabou por ser objecto de sete acordos de reequilíbrio financeiro sempre penalizadores para os contribuintes. Depressa o vírus pegou e a partir daí foi um fartar vilanagem. Um sistema que até poderia ser vantajoso se se limitasse a algumas obras estratégicas que se revelassem muito rentáveis e com o risco todo do lado dos privados generalizou-se com o risco transferido para os contribuintes e tornou-se regra ruinosa.
Começaram a fazer-se PPP a torto e a direito, muitas vezes sem avaliação prévia nem cuidadosa análise da relação custo-benefício, em alguns casos até para obras menores que davam voto rápido, como o Metro Sul do Tejo. O
que importava era fazer coisas para o eleitor ver. Se o país se tramava no entretanto, não era problema que tirasse o sono aos governantes."
"As PPP foram mesmo assim tão más?"
"Piores do que más! Quase todos os contratos de PPP derraparam, em alguns casos trezentos por cento. As renegociações foram sucessivas, sempre em desfavor dos dinheiros públicos. Projectos apresentados como financeiramente auto-sustentáveis, como a Lusoponte e a Fertagus, acaba-116
ram subsidiados pelo estado. Diziam que era a custo zero e mentiam com todos os dentes. Só as Scut custam quinze mil milhões de euros aos contribuintes! Para que perceba melhor a enormidade deste valor, basta dizer que todo o dinheiro que o estado recolheu por nos aumentar os impostos e cortar os salários só deu para pagar pouco mais de metade das Scut." Apontou para os seus dois companheiros de viagem. "Você e aqui o Tomás estão no desemprego porque é preciso remunerar este desvario eleitoralista! E isto é apenas a ponta do icebergue. Por exemplo, em 2001 mandaram-se construir dez hospitais em regime de PPP. Dez anos depois, só um tinha sido inaugurado, o de Cascais, entretanto renegociado... a expensas, claro, dos contribuintes. Os projectos dos hospitais derraparam sucessivamente e nos próximos trinta anos irão custar oito mil milhões de euros ao erário público, valor quase equivalente a todo o dinheiro que o estado português recolheu com as medidas de austeridade até 2012. O terminal de Alcântara foi negociado sem concorrência e por ajuste directo, condições propícias à corrupção, e renegociado com prejuízo para os contribuintes. A Casa da Música, mandada construir para celebrar em 2001 o Porto Capital Europeia da Cultura, só foi inaugurada cinco anos depois do evento, após atrasos e renegociações penalizadoras para os dinheiros públicos. O projectista atrasou-se na entrega do trabalho e, em vez de ser penalizado, foi premiado com mais de um milhão de euros!" Fez um gesto expressivo com a mão. "Paga, Zé!"